Sociedade Anônima
Adriana
Kairos
Conquistar
o primeiro emprego não é uma coisa fácil. Ser independente, ter seu próprio
dinheiro sem ter que esperar o “quando der” da mãe, da avó, ou do pai operário
que nem sabe se conseguirá pagar todas as contas no final do mês, é o sonho da
maioria dos jovens da periferia.
Ensino
médio completo garante o diploma. Que bom, não acha? Afinal, já saber assinar o
nome, ler letreiros, acessar as redes sociais... Isso é o essencial, isso é o
importante. Pra quê mais? Sem professor de Matemática nos dois últimos anos e
com a professora de Português que mais adoecia que aparecia - “meu adicional de
insalubridade deveria dobrar no mínimo!”- naquele colégio cravado de confeitos
de aço numa rua sem-saída nos fundos da comunidade, os moleques, na
segunda-feira bem cedo saem com roupinhas de domingo, cabelos penteados, tênis
impecavelmente limpos (tem que ter boa aparência, tá escrito no anúncio) e
pasta com “curriculum vitae”, confeccionado na Lan House, em baixo do braço, vão
procurar emprego. E eles nem sabem que Machado foi preto, entende?!
Alguns,
depois de muitas segundas-feiras, voltam sorridentes planando sobre planos de
dias melhores com uma caderneta azul assinada pelo empregador. Outros, depois
de muito “não-saber-o-que-fazer”, também voltam “voando” com mochilas carregada
descaminhos e alguma grana paga pelo empregador...
Mas,
não existe melhor sensação que a de receber o seu primeiro salário. Ah... Não
há! Quem nunca ficou namorando um objeto qualquer durante algum tempo e quando
enfim - DI-NHEI-RO! - não saiu correndo a dar-se esse presente. Pois é, com
Aninha não foi diferente.
A
adolescente saia todas as manhãs de segunda a sábado às 5h30m da comunidade
onde morava na zona norte do Rio, ao supermercado na zona sul, seu primeiro
emprego. Mocinha esperta e descolada, não se atrapalhava e nem temia as
intempéries da cidade. A mina era folgada mesmo.
Gostava
de sair com os amigos do trabalho, todos adolescentes como ela, depois do
expediente. Iam à praia, ao shopping e foi lá no Rio Sul que ela viu o que
seria sua motivação para acordar cedinho todos os dias.
-
Que tênis lindo!
-
Fala sério, Aninha, é exatamente o valor do nosso salário.
-
E daí! É “Redley” azul-caneta, pô!
Enfim,
dia 5, dia do pagamento. E não poderia cair num melhor dia da semana, sábado! A
garota saiu da loja onde trabalhava, com o bolso cheio do seu primeiro grito de
independência para ir esvazia-lo no shopping mais próximo.
A
sensação de voltar pra casa com sua recompensa conquistada com tanto esforço,
realmente, não tinha preço. A bronca da família por ter gastado todo o dinheiro
que recebera numa única compra não abalou a efêmera alegria da menina. Sorria
apenas e decidiu:
-
Segunda-feira eu estreio esse tênis!
O
domingo demorou tanto a passar. Abria a porta do guarda-roupa de vez em sempre,
como se não acreditasse que o tinha ali. Não
era mais uma menina com um livro: era uma trabalhadora com o seu tênis.
Acordou
ainda mais cedo na segunda e vestiu-se como se fosse a uma festa. Pôs nos pés
seu prêmio azul-caneta e saiu feliz e faceira pelas ruas recém-asfaltadas por
um candidato a vereador qualquer. Tomou o primeiro ônibus que a levou até a
Central do Brasil, desceu em uma das pistas centrais e ali, sentindo-se linda,
na moda, uma adolescente como todas as outras, com os mesmos acessórios,
vestimentas e calçados, sorria abobada olhando para os pés em estado de impressionante
euforia. Esperava a próxima condução quando de repente...
-
Aí, tia, eu acho que esse tênis aí é do Jorge. – abordou-a um molequinho de uns
oito anos, magrelo das canelas russas, sem camisa e descalço.
Aninha
olhou para o menino com desdém e debochou:
-
Ah, moleque, há essa hora? Vai lavar a bunda, vai! Pelo amor de Deus, né...
O
menino, embora pequeno e franzino também não era bobo, imediatamente gritou:
-
Oh, Jorge! A tia aqui não quer me entregar teu tênis não...
-
Puta que pariu! – gritou os olhos da garota quando viu o armário que se
aproximava e que atendia pelo nome de Jorge. Não tinha mais que 18 anos o rapaz,
mas era grande. A moça era folgada, mas ainda conservava algum tino. Afinal,
manda quem pode, obedece quem tem juízo.
-
Acho que esse tênis aí é meu, né não?! – sugeria a voz grave do grandão, funcionário
prototípico da outra empresa.
-
Claro! – Aninha tirou mais que rapidamente seus ex-sapatos novos e saiu correndo
sem olhar para traz, coisa que só o saber cognitivo dos habitantes das grandes
cidades pode explicar.
O
grandão, de mão ao pequeno, levou os tênis para o morro, vende-os a preço de
banana a outra moça destemida “cria” do lugar. Ele desceu de lá tropeçando em
pedras baratas. Ela, com roupinha de domingo, cabelos penteados, tênis
impecavelmente azuis e pasta com “curriculum vitae”, confeccionado na Lan
House, em baixo do braço, foi procurar emprego.