quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Sociedade Anônima








Sociedade Anônima
Adriana Kairos


Conquistar o primeiro emprego não é uma coisa fácil. Ser independente, ter seu próprio dinheiro sem ter que esperar o “quando der” da mãe, da avó, ou do pai operário que nem sabe se conseguirá pagar todas as contas no final do mês, é o sonho da maioria dos jovens da periferia.
Ensino médio completo garante o diploma. Que bom, não acha? Afinal, já saber assinar o nome, ler letreiros, acessar as redes sociais... Isso é o essencial, isso é o importante. Pra quê mais? Sem professor de Matemática nos dois últimos anos e com a professora de Português que mais adoecia que aparecia - “meu adicional de insalubridade deveria dobrar no mínimo!”- naquele colégio cravado de confeitos de aço numa rua sem-saída nos fundos da comunidade, os moleques, na segunda-feira bem cedo saem com roupinhas de domingo, cabelos penteados, tênis impecavelmente limpos (tem que ter boa aparência, tá escrito no anúncio) e pasta com “curriculum vitae”, confeccionado na Lan House, em baixo do braço, vão procurar emprego. E eles nem sabem que Machado foi preto, entende?!

Alguns, depois de muitas segundas-feiras, voltam sorridentes planando sobre planos de dias melhores com uma caderneta azul assinada pelo empregador. Outros, depois de muito “não-saber-o-que-fazer”, também voltam “voando” com mochilas carregada descaminhos e alguma grana paga pelo empregador...

Mas, não existe melhor sensação que a de receber o seu primeiro salário. Ah... Não há! Quem nunca ficou namorando um objeto qualquer durante algum tempo e quando enfim - DI-NHEI-RO! - não saiu correndo a dar-se esse presente. Pois é, com Aninha não foi diferente.

A adolescente saia todas as manhãs de segunda a sábado às 5h30m da comunidade onde morava na zona norte do Rio, ao supermercado na zona sul, seu primeiro emprego. Mocinha esperta e descolada, não se atrapalhava e nem temia as intempéries da cidade. A mina era folgada mesmo.

Gostava de sair com os amigos do trabalho, todos adolescentes como ela, depois do expediente. Iam à praia, ao shopping e foi lá no Rio Sul que ela viu o que seria sua motivação para acordar cedinho todos os dias.
- Que tênis lindo!
- Fala sério, Aninha, é exatamente o valor do nosso salário.
- E daí! É “Redley” azul-caneta, pô!

Enfim, dia 5, dia do pagamento. E não poderia cair num melhor dia da semana, sábado! A garota saiu da loja onde trabalhava, com o bolso cheio do seu primeiro grito de independência para ir esvazia-lo no shopping mais próximo.

A sensação de voltar pra casa com sua recompensa conquistada com tanto esforço, realmente, não tinha preço. A bronca da família por ter gastado todo o dinheiro que recebera numa única compra não abalou a efêmera alegria da menina. Sorria apenas e decidiu:
- Segunda-feira eu estreio esse tênis!

O domingo demorou tanto a passar. Abria a porta do guarda-roupa de vez em sempre, como se não acreditasse que o tinha ali. Não era mais uma menina com um livro: era uma trabalhadora com o seu tênis.

Acordou ainda mais cedo na segunda e vestiu-se como se fosse a uma festa. Pôs nos pés seu prêmio azul-caneta e saiu feliz e faceira pelas ruas recém-asfaltadas por um candidato a vereador qualquer. Tomou o primeiro ônibus que a levou até a Central do Brasil, desceu em uma das pistas centrais e ali, sentindo-se linda, na moda, uma adolescente como todas as outras, com os mesmos acessórios, vestimentas e calçados, sorria abobada olhando para os pés em estado de impressionante euforia. Esperava a próxima condução quando de repente...
- Aí, tia, eu acho que esse tênis aí é do Jorge. – abordou-a um molequinho de uns oito anos, magrelo das canelas russas, sem camisa e descalço.
Aninha olhou para o menino com desdém e debochou:
- Ah, moleque, há essa hora? Vai lavar a bunda, vai! Pelo amor de Deus, né...
O menino, embora pequeno e franzino também não era bobo, imediatamente gritou:
- Oh, Jorge! A tia aqui não quer me entregar teu tênis não...
- Puta que pariu! – gritou os olhos da garota quando viu o armário que se aproximava e que atendia pelo nome de Jorge. Não tinha mais que 18 anos o rapaz, mas era grande. A moça era folgada, mas ainda conservava algum tino. Afinal, manda quem pode, obedece quem tem juízo.
- Acho que esse tênis aí é meu, né não?! – sugeria a voz grave do grandão, funcionário prototípico da outra empresa.
- Claro! – Aninha tirou mais que rapidamente seus ex-sapatos novos e saiu correndo sem olhar para traz, coisa que só o saber cognitivo dos habitantes das grandes cidades pode explicar.

O grandão, de mão ao pequeno, levou os tênis para o morro, vende-os a preço de banana a outra moça destemida “cria” do lugar. Ele desceu de lá tropeçando em pedras baratas. Ela, com roupinha de domingo, cabelos penteados, tênis impecavelmente azuis e pasta com “curriculum vitae”, confeccionado na Lan House, em baixo do braço, foi procurar emprego.

Um comentário:

Joao Antonio Ventura disse...

A questão do emprego é crucial nestes tempos de globalização, haja vista o que está ocorrendo na Europa e também nos EUA. Por enquanto...
Quanto ao desfecho, passear com os sapatos novos, também passei por isso, mas naquele tempo e lugar era mais tranquilo. Abraços.pay

"Às vezes, tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconscientes, eu antes não sabia que sabia."

Clarice Lispector