sábado, 24 de abril de 2010

Metalingüísticamente penando


Metalingüísticamente penando



Todas as vezes que penso em escrever algo me surpreendo com a minha impossibilidade de fazê-lo. Não sei, mas penso que tudo o que eu queria dizer já foi dito, contudo, não foi escrito; ficou pr’eu escrever. No entanto, me sinto muito presunçosa por isso e silencio na página branca iluminada do meu computador. Ela não ilumina as minhas idéias, nem tampouco me apresenta novidades, só a imagens que já conheço. E me espanto no emudecer dos meus dedos por não poder descrevê-las melhor.

Acho que vou enlouquecer. Todas as coisas me surpreendem, porém nada mais me choca. Sinto muito medo disso. Apavoro-me ao perceber que o cotidiano tornou-se comum e que seus personagens são apenas mais alguns personagens baratos de uma historinha qualquer. Tento procurar neles o novo, mas só encontro o velho em nova edição. É como se o medo, a fome, a violência e a dor ganhassem capas novas a cada novo número.

E os números?... Meu Deus, os números... Nem eles me roubam mais palavras, só letras rasuradas aqui ou ali. Só não me calo porque não é do meu feitio. Em mudas palavras, ou melhor, em mudas letras grito sons de esperança. Em mim, fervilham vozes jamais ou poucas vezes ouvidas, que vou borrando sobre o papel, ou diante da tela fria. Vozes em espera. Fé (quase inabalável) de que algo vai mudar. E é por essa esperança que muitos bebem; que muitos choram; que uns rezam e outros oram: “vai tudo melhorar”.

Enquanto isso, o poeta sofre com a mudez de sua poesia, com a fuga das palavras e a palidez das folhas vazias. Fugaz é a poesia ante a bala perdida, ante a timidez da mão pequena esmolando “algum”, clamando comida, implorando... Implorando. Sublime é a letra que fotografa e revela as vidas perdidas que os olhos não veem. É por isso que, todas as vezes que penso em escrever algo me surpreendo com a minha impossibilidade de fazê-lo...



Adriana Kairos

terça-feira, 13 de abril de 2010

Chuvas de verão


Chuvas de verão



Na mesa era parca a comida
Mas nunca se viu tanto amor num só lugar.
Estendidas no varal roupas coloridas
E no telhado roupas brancas pra quarar.

Vieram do lixão alguns livros
Que adornavam a velha estante
Entre paninhos de crochê e bibelôs de vidro
O sonho de lê-los era constante.

Também tinha uma Bíblia aberta
Diziam que era pra proteger.
Mas como um livro aberto ampara
A quem não o pode ler?

Muita renda a dona tecia
Mas toda a renda ainda era pouca.
O marido cansado volta da lida
E da panela o alento, o cheirinho da sopa.

Os moleques limpinhos e buchudos
Corriam de pés no chão atrás do vira-lata
Estavam felizes os meninos
O pai trouxera balas e goiabada em lata.

No horário nobre se reunia a família
Diante da tevê cheia de chuviscos e fantasmas
A notícia da chuva que viria
Trouxe lhes o medo. Os assombrava.

A noite foi de vigília
A cada gota, uma parte da encosta descia
Quando lhes pediam pra sair resistiam
“Não temos pra onde ir”.Diziam.

No fundo sabiam o que os esperavam
Acalmavam as crianças quanto ao que poderia acontecer.
Os barracos vizinhos já desceram.
A esperança será a última a morrer.

Abraçados e com medo
Esperavam por uma providência divina.
Pediram até perdão pelo pecado
De haverem nascido assim tão desventurados.

Então numa grande avalanche
Os livros a Bíblia e a estante
O vira-lata, a tevê e a família.
Sucumbiram naquela noite que chovia.

E ao vivo noticiaram na tevê
Que aumenta a cada hora
O número de vítimas
E que amanhã ainda vai chover.







Adriana Kairos


(Este texto foi escrito à dois anos, e infelizmente, nunca foi tão atual como hoje. Sigo de LUTO pelas vítimas do Poder Público do meu ESTADO...)

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Inspira... Expira... Uff...


Inspira... Expira... Uff...

Inspirei...
E senti um perfume diferente.
Suave
Intenso
Tomou-me os pulmões...
Tomou-me a alma.
Logo senti sua sombra
Quente
Passeando
Entre minhas pernas...
Entre meus peitos...
Na minha boca...
Me entreguei!
Expirei...
Voz estéreo
Ao pé do ouvido
Notas em palavras.
Canções de amor à capela
Balê de pernas
Braços
Cabelos
De corpos suados.
Desejos sobre a cama.
Lembranças de ti...
Uff...



Adriana Kairos

"Às vezes, tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconscientes, eu antes não sabia que sabia."

Clarice Lispector