sábado, 31 de janeiro de 2009

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Delírios



Delírios



Sereno azul
Cheiro rosa
Alegria cinza
Saudade morena

Dia do bem
Tarde monótona
Noite chata
Madrugada vazia

Martelo amarelo
Chinelo com prego
Vestido comprido
Maquiagem sem coragem

Macarrão instantâneo
Insalubridade
Botão da blusa
Ônibus sem viagem

Bela miséria
Flor sem vida
Crianças morrendo
Justiça iníqua

Neve no verão
Amor de mentira
Loucura da boa
Gente fingida.



Adriana Kairos

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Todos os olhos


Todos os olhos



Parecia outra pessoa, qualquer um podia ver. O tempo e seus efeitos nos transformam, mas sobre ela era imperdoavelmente nítida a marca dos anos. As mãos e o colo ganharam relevos, com fendas e saliências que o implacável inimigo deixou. Tinha os cabelos sempre presos ao pé da nuca e sob sua cabeça, imponentes fios de branca neve que constantemente lhe cobriam os opacos olhos.

Há alguns (muitos) anos abandonara as roupas de festa. Cobria-se com vestidinhos simples feitos à mão; com finos vieses adornando o decote e delicados botões cobertos pela mesma fazenda.

Abandonou também a intempestividade (escondeu-se). Tornou-se abnegada, comedida, num processo tão gradual que ninguém viu essa metamorfose. É que ela acreditava que assim, só assim; poderia ser uma boa mãe.

Mas tinha deixado no peito, guardado, um amor tão precioso, tão raro e tão seu... Que nunca permitiu olhos alheios sobre ele. Mantinha-o sempre brilhando... Imortal no fundo do seu mar. Vivo apesar dos anos. Moço apesar do tempo.

Olhos atentos perceberam que havia muito tempo que ela não saia pra passear. De alguma forma gostava de estar só. Era nessas horas que lapidava em sua memória a jóia, o inestimável tesouro que encobria em si. Porém uma caminhada sob o sol com os netos lhe faria bem aos ossos, foi o que disseram. E inconscientemente, tinha razão.

Olhos mais atentos foram testemunhas de quando seus olhos tornaram a brilhar como faróis indicando a direção em meio à tempestade. Quando levou as mãos aos cabelos e os soltou, fazendo-os dançar ao som da brisa morna daquela tarde. Quando ajustou no corpo o vestido e como ele (o vestido) já parecia diferente, pois se colocou ereta, respirando fundo e sustentando os seios.


Olhos mais atentos viram quando o seu rosto se iluminara em um largo sorriso e o quão estéreo soou sua voz quando cumprimentou aquele senhor. Ela o apresentou como um velho amigo... Mas olhos mais atentos souberam que ele fora mais, muito mais que isso.

Aquela tarde ensolarada a trouxe de volta de onde quer que esteve e desde então, seu tesouro já não o ocultava mais... Todos os olhos podiam ver.




Adriana Kairos

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Sus ojos


Sus ojos


en sus ojos hay algo
algo bueno de mirar
no sé...
creo que son espejos
reflejos de un mar
inmenso como el tiempo
perdidos en lagunas negras
ojos para enamorarse




Adriana Kairos

domingo, 25 de janeiro de 2009

Brisa da manhã


Brisa da manhã



Pela manhã
Brotaram as flores do jardim
Colorindo o cenário
De sonhos
E de amores.

A brisa pôs-se a levar seus aromas
Entrando pelas janelas abertas
Da casa sorridente,
O abrigo dos amantes.

Cheiro bom que ela leva...
E que se mistura ao perfume do vinho,
O cúmplice dos risos,
A testemunha perfeita
Abandonada à meia taça.

Brisa matreira
Que acordou as roupas
Esquecidas pelo chão.
Que soprou a chama da vela chorona,
A vigilante da noite

Que arrepiou a pele dos corpos
Esparramados sobre os lençóis
Bagunçados de amor...
Entorpecidos de prazer.







Adriana Kairos

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Clara


Clara

O que foi que deu naquela menina?De onde será que ela vem agora? Tá tão diferente, tá brava. Seus olhos estão tão fundos e vermelhos, parece doente.

O que aconteceu com a Clara?O namorado sumiu. A mãe não a quer mais em casa. Ela parece só.

As pessoas falam demais. Dizem que ela sai com qualquer um. Acho estranho, ela parece tão frágil...

Um dia, é verdade, eu a vi perto daquele casarão abandonado, lá perto da escola. Ela estava acompanhada. Era um homem velho, corpulento. Ele a abraçava...E a beijava...Ela parecia não gostar. Eu estava com pressa. E ela parecia indefesa.

Também ela sempre usou essas roupas provocantes e maquiagem carregada. Clarinha parece perturbada.

Agora vive embriagada, zanzando por ai. Uma vez a encontrei sentada na praça olhando pro nada...Vi quando uma lágrima caiu. Parecia deprimida...

Daqui vejo a movimentação da vizinhança. Há gritos e uma ambulância vem chegando...
"O que tá acontecendo?"
Meu Deus!É a Clara...E ela parece dormir...




Adriana Kairos

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Passarinhos



Passarinhos


Meio-dia tem revoada de passarinhos, coisa bonita de se ver. Barulhentos, carregando suas mochilas e cadernos; fazendo firulas a caminho de seus ninhos. Enchendo as ruas da cidade de fantasias, de cores, de vida. Ah... Os passarinhos...

Gosto deles; dos que pulam de uma laje a outra, voando junto às pipas que soltam. Dos que correm descalços pelos becos, fugindo de alguma traquinagem. Gosto dos seus cantos que ecoam nas risadas livres morro a cima, feliz morro a baixo. São lindos, são multicoloridos. Negrinhos de olhos azuis, branquinhos de cabelos sararás. Infinitas são suas cores, infinitas são suas formas, infinitas são as suas belezas; impossíveis de enumerar.

Mas a cada dia torna-se mais curto o viver desses bichinhos. Caçadores munidos de “bodoques” 9mm, uniformizados de morte e camuflados de ordem; sobem os morros a procura de outras aves. Dizem que não querem acertar os passarinhos, mas não raro encontramos um caído pelo chão.

Pobres passarinhos, que se sentam à porta de casa após o café da manhã, que se escondem no banheiro com medo dos barulhos da caça, que vão ou voltam desavisados da escola pra casa; quando os caçadores chegam por lá... Ah passarinhos...

Um dia, um caçador, “sem querer” (foi o que ele disse), acertou um outro tipo de passarinho. Um lindo passarinho de exposição, desses com pedigree. Logo o “homem grande” da cidade classificou o ato como barbárie. “Como pode?” Disse ele e acrescentou: “eu tenho um desses também”.

Mas o que dizer dos passarinhos da Providência, que foram entregues, por caçadores (de “chumbos”), como presentes às aves de rapina de um outro habitat? Restou para as donas dos bichinhos chorarem a maldade de caçadores tão (no mínimo) desastrados. Com pedigree ou sem, a dor as faz igual, mas a justiça não.

Hoje todos conhecem esses fatos, alguns até sabem o nome dos passarinhos. Mas e amanhã? Quando todos já tiverem esquecido? Novos passarinhos poderão ter o mesmo fim! Até quando?









Adriana Kairos

sábado, 17 de janeiro de 2009

Concreto


Concreto


Conflitos étnicos
Sentimentos à flor da pele
Violência urbana
Tortura infame
Ai...
Tortura chinesa
Mente em desatino
A loucura cerca

Atitudes desconcertadas
Desconcerta o desacerto
Falta de tempo
Tempo para nada
Corrida para lugar nenhum

Nova ditadura
Velada
Em casa
Carinhas de anjo
Subjugam seus pais

Mundo em transe
De novas ordens
Desordenadas
Desajustadas
Ajustadas
Ao novo mundo.





Adriana Kairos

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Plano de fuga


Plano de fuga


Não há novos caminhos
Dando voltas entorno da montanha.
Novas estações.
Os mesmos erros de cara nova.
Decepção.
Tudo em vão.
Bebida amarga.
É preciso sair dessa trilha.
Quem sabe criar asas e voar.
Conhecer novos rumos
Inventar outros caminhos.
Enveredar-me.
Ganhar os céus voando baixo
Curtir o vento
Viver o novo
Não mais voltar.
Em caminhos claros, de grama verde;
Fruto fresco, água doce.
Libertar-me.
Talvez eu ore...
Quem sabe dá certo...
Talvez eu corra...
E eu consiga sair desse lugar.
E se eu gritasse?
Já tentei.
Não ecoa. Não vem ninguém.
Só me resta então fechar os olhos
Bem apertados.
E quem sabe assim. Só assim
Poderei voar...



Adriana Kairos

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

O anjo de Ana


O anjo de Ana



Quando Ana morreu fazia sol. O inverno às vezes é ensolarado no Rio, mas ela sentia frio. Enquanto morria ouviu um choro e viu o rosto de um anjo. Era estranho e bonito também. A vida e a morte, o real e o lúdico na mesma sala... Naquele rosto...

E a moça continuou adiante, no destino errado que fez pra si. O anjo agora seguia com ela. E o via crescer mais lindo a cada primavera. Mas era um anjo teimoso. Acintoso."Sabia de tudo". Sabia demais. Não aceitava conselhos, não gostava de sermões.

Certo dia, durante mais uma de suas pelejas diárias, Ana olhou nos olhos do anjo e se surpreendeu... Ela estava lá. Não o seu reflexo, mas ela... Em outro corpo, em outro tempo...

E durante alguns segundos, viu cirandar nas meninas dos olhos dele a sua vida inteirinha: seus sonhos, seus anseios e projetos. Tudo o que ficou para traz, submerso sob um mar de desengano, emergia agora numa explosão de emoções.

Algo assim tão forte a fez acordar e ouvir em outra voz suas velhas palavras, a identificar seus antigos pensamentos. De novo viu-se naqueles espelhos vivos, ou parte de si que pensara ter morrido, que julgara haverem matado.

Pôde então, entendê-lo. Na hora em que se encontrou, conheceu a alma do seu anjo... Na hora em que olhou em seus olhos percebeu que ressuscitara.

Ana considerou suas pirraças e o amou ainda mais. E apesar de não saber o quê, ele também percebeu que algo havia acontecido. E fitando fixo os olhos um do outro, se reconheceram, se abraçaram e não brigaram mais. Nunca mais.





Adriana Kairos

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Meus cadernos


Meus cadernos



Divido com meus cadernos, desde pequena, os sentimentos e sentidos que se embolam em mim. As crises cheiram à grafite apertados sobre as folhas. Os erros, borracha branca. As alegrias são das cores das canetinhas e os sonhos pincelados a guache. Quanto às burrices... Ah... Vou desdobrando as pontas das folhas.

Cuido bem dos meus cadernos coloridos. Amo suas páginas. E apesar de desejar rasgas as que estão cinzentas à grafite, as respeito. A seu modo, elas também me fizeram bem. Ajudaram-me a crescer.

São os meus melhores amigos. Confidentes. Sempre prontos às cores, aos rabiscos, às lágrimas, ao guache...

Quando eu era menina, ouvi Chico cantar quem era o Caderno. Comprovei que são mesmo assim e até mais! Os meus cadernos são o meu mundo de pauta, espiral e capa dura.








Adriana Kairos

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

No charco


No charco


Estava mergulhada em um charco de sentimentos bem familiares. Cheiravam mal, mas não os culpava, esse odor vinha do seu íntimo. Estava plena de uma demasiada tristeza. Não sabia se conseguiria libertar-se. Tão pouco se queria. Pois todas as vezes que se cobrira de flores, cheirando como a primavera; logo tropeçava nessa poça, nessa lama. Se fora empurrada ou se caia sozinha isso já não importava. Acostumou-se com o frio, com os gritos, com o horror.

Sob esse charco denso de pustulentas chagas dançava com a loucura, a linda dama em traje de festa. Dançavam sob a luz da lua de rosto colado, rindo de si mesma, sem discernir-se. Admirando sua sombria valsa através dos espelhos do grande salão da sua alma.

Enquanto dançava, encontrou seu lado negro num canto escuro de uma dessas noites. Sentiu medo, mas não correu. Fascinou-se ao ver em seus olhos negros, tão profundos, sentimentos avessos aos daquelas pessoas que a rodeavam, trazendo olhos imensamente vazios. Tentando convencer-lhe de que se importavam. Ela não os acreditava.

Passou a ver a morte e a dúvida caminhando de mãos dadas em direção às flores negras que brotavam maravilhosas em um canteiro sórdido, junto a seus olhos. Eram botões extraordinários que desabrochavam no breu sob uma carregada chuva de um vermelho vivo... Adormeceu.

Quando acordou, aqueles dos olhos imensamente vazios, levaram-na a ter com um ser de uniforme alvo, que cuidou de seus regadores com ataduras brancas. Deu-lhe algo de beber e algumas pastilhas ruins. Vestiu-a também com um casaco de longas mangas. Talvez quisesse protegê-la do frio que havia em si.

Agasalhada, mas tremendo. Sentou-se a beira daquele charco, num canto qualquer de uma sala desconhecida, próxima a uma janela. De onde passou a admirar, sem conseguir entender, a rua e as pessoas que incrivelmente escapavam de suas poças.





Adriana Kairos

sábado, 3 de janeiro de 2009

Feminae


Feminae


Lá vem ela de novo. Meu Deus, o que faço?
Sinto-me diferente quando a vejo. Será que alguém já percebeu?
É estranho. Sinto minhas mãos gelarem, assim como o meu estômago que treme e revira, vira, ira... Cubos de incertezas mal batidos em mim.
Transpiro pelo nervosismo, mas é pela minha testa que goteja a ansiedade. Alguém me disse que quando passo naquela rua (na rua dela) meus olhos brilham. Quisera ela correspondesse à luz dos meus olhos.
Mas o que estou dizendo? Jamais ela olhará para mim assim... Eu acho...
Pensei em escrever algumas coisas para ela, mas o que diria?
Sinto medo do que sinto. É demasiadamente profundo, profano, proceloso, problemático, profuso... Só não é prosaico. Creio que é amor... Não sei... Tenho medo.
Imagino como seria beijá-la, a que céu chegaria ao tocá-la e se ela seria capaz de me fazer sonhar de olhos abertos.
Passo os dias a imaginar coisas, a sonhar sonhos que jamais imaginei sonhar. E agora lá vem ela em minha direção. Não sei o que dizer. Ela sorri para mim e lentamente vejo abrir a sua boca, “loca” é a sensação que arrepia em mim. Carismaticamente, ela sorri e diz:
“- Linda a sua saia!”
“- Obrigada!”





Adriana Kairos

Faca de dois gumes


Faca de dois gumes


O vento açoitou
O lençol que estava
Sozinho ali,
Naquele varal trêmulo,
Quase esturricado pelo sol.

Veio a brisa
E o beijou ternamente...


O que quer o vento afinal?
E qual a intenção da brisa?

Nem todo açoite mata.
Nem todo beijo é doce.

O vento disse açoitar o lençol
Para lembrá-lo de que não está só
De que logo sairá dali
E voltará ao armário (sua casa)
Que em breve será útil
Outra vez.

Por sua vez
Disse a brisa ao lençol
Com um sorrisinho
Ao canto da boca...
Que o beijou
Para lhe acariciar
A solidão
E que precisava
Sussurrar lhe baixinho
Ao pé do ouvido assim:
“Conforme-se, a vida é assim mesmo...”

Em quem acreditará o lençol?
Até aonde queimou sua razão
Sob o sol?



Adriana Kairos

"Às vezes, tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconscientes, eu antes não sabia que sabia."

Clarice Lispector