quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A moça e a mosca




A moça e a mosca

Adriana Kairos



Ela era daquele tipo de pessoa, que de tão desprovida, só tinha uma mosquinha-de-guarda. Moça anônima, moça qualquer. Um número numa ficha de entrada de um hospital, de um abrigo, de um lugar qualquer que a acolha, que mate sua fome por algumas horas, que lhe empreste um sabonete para um banho eventual. Um número fora das pesquisas (nunca respondeu ao IBEGE), dentro das estatísticas. Quando morre, um indigente a mais, um Brasil a menos.


Dois quaisquer a deixaram na porta de um outro-qualquer hospital. Ela grunhia segurando a barriga inchada, pequena, parecia um calo. Foi socorrida por outros anônimos-enfermeiros e levada ao centro cirúrgico. Era caso de urgência. Era caso de fome ou morte.


Tinha mesmo mais fome que dor. Deu a luz a um bebê tão faminto quanto ela. A mosca entrou pela janela da enfermaria e observou a tudo e a todos de um canto da parede. A tudo: seu sofrer, seu chorar, seu medo, sua desilusão, seu abandono, sua tristeza infinita... A todos os olhares, de horror, de preconceito, de julgamento, de maldade, de descompaixão cristã.


A mosca só a observava, não se metia, não interferia em nada. Nada. Observava apenas. Outra coisa também não podia fazer o guardião diminuto, sempre correndo o constante e eminente risco de uma palmada mortal de algum desavisado. Uma mosca com status de anjo. Foi o que sobrara para ela, para a moça com o corpo e a idade que a rua lhe dera.


A mosca também a acompanhou na sala de parto e seguiu velando-a por toda a noite. Ela se sentia impotente. Que raios de guardião eu sou. Aproximou-se da moça e passou a observá-la da cabeceira da cama. Sempre tinha alguém tentado espantá-la de seu posto. Sobrevoava para salvar-se e voltava, sempre, para o mesmo lugar.


Uma enfermeira quis mostrar a moça sua cria. Ela respirou fundo, fechou os olhos, estendeu os braços para afastar qualquer tentativa de aproximação e disse não. Deitou e fingiu dormir. Despertou com o som do carrinho que trazia a ceia noturna. Sentou-se a beira da cama e devorou os biscoitos, as geleinhas em potinhos descartáveis e o suco. Ávida como nunca, pediu o que sobrara das outras internas da maternidade.


Quer ver sua filha? Enfermeira insistente.


O seu olhar vazio chocou as outras mães da enfermaria, mas ninguém disse nada. Todos ficaram mudos diante do que acontecia. Diante da miséria-ferida aberta e sem médicos para suturá-la. O que dizer ou o que fazer? Perguntaram-se todos sem palavras.


Ela pensava em não-sei-o-quê. A mosca jurou que ela sonhava. Contudo, a moça sabia que esse privilégio sua origem não lhe dava.


Não quero vê-la. Quero que a levem para um outro destino.


A encaminharemos ao conselho tutelar.


O tempo passou nas gotas cansadas do soro sobre o suporte. A moça, saciada de sua fome e de seu desejo materno, admirava calmamente sua mosquinha guradiã. Cansada de velá-la, a mosca sobrevoou um pouco mais o seu leito, sabia que a moça também cansara.


A mosca pousou dormida sobre o ventre da moça dormente. A moça descansou seus olhos e suas mãos sobre a mosca. A mosca não a velou mais, nem a moça sentiu fome outra vez.

domingo, 30 de outubro de 2011

Biblioteca Parque de Manguinhos Apresenta: Sarau Poético



Sábado, dia 5 de novembro, a partir das 17h
Presença da banda Budegas
MCs Allan Marola e Pedrinho
Poetas convidados:
Elesbão Ribeiro e Adriana Kairos
Traga sua poesia e o seu poema favorito!
Microfone aberto.

Biblioteca Parque de Manguinhos
Avenida Dom Helder Câmara, nº 1184 (atrás do Colégio Estadual Luiz Carlos da Vila)
Tel: (21) 2334.8915/8916/8917

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Perdição


Perdição

Adriana Kairos



Perdeu-se de si mesma. E por mais que tentasse e vagasse, espalhasse cartazes, gritasse, denunciasse e se espalhasse chamando a atenção... Não se encontrou mais em si. Ficou tudo tão revolto e estranho. Perdeu-se em olhos alheios. Olhos que talvez jamais a quisesse encontrar. Garante que ainda voltará a se encontrar. Ojalá que assim seja...

Palavras demais de um lado só dos ouvidos, vozes demais dentro e fora de si. Sensação de cansaço e desespero, lascívia e medo. Confusão! Querer demais, vontade demais e ímpeto de menos. Perdera a prática ou esquecera como é?

Dizia curtir a sombra das noites sem lua e o gelo do uísque nas madrugadas frias. Não sabia nem mudar de assunto. Disse que faltou aquele beijo que não foi. Que faltou matar a navalha o desejo que escorria, a fantasia... Mas o que faltou mesmo foi jogar uma peça a mais do jogo, alguns instantes mais e pronto... Perdia-se de vez de si.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Agradecimentos a galera do Colégio Logosófico
















Agradecimentos a galera do Colégio Logosófico



Gostaria de compartilhar com todos um momento que me encheu de alegria e encantamento. Ontem, dia 6 de setembro, o Colégio Logosófico de Botafogo, me recebeu para um delicioso bate-papo com os alunos do 6º ao 9º ano. O convite foi iniciativa do professor de literatura da instituição, o professor John Keating*. Ops! É quase isso. (risos) O professor Tiago Cavalcante, que trabalhou com os alunos o meu livro: Clarabóia.

A proposta da equipe docente do colégio era tentar fazer com que os alunos “entendessem de maneira mais consciente o problema da violência que todos vivemos hoje no Rio de Janeiro”, optando desta forma, pensar com eles (os alunos) “temas como: favela, criminalização da pobreza, movimentos sociais, corrupção policial”, dentre outros assuntos.

Na ocasião os alunos apresentaram peças sobre os textos: “O sonho de milhões”, “Depoimento” e “La Pietà”. O palco estava lindamente decorado com pipas coloridas e cheias de poemas fazendo alusão ao texto “A pipa” que compõe o livro utilizado pelo professor. Um sonho! E como se não bastasse isso tudo para que me deixassem toda derretida (risos), os alunos ainda musicaram uma de minhas poesias, “Asas de Ícaro”. Ficou lindíssimo. Fiquei realmente sem palavras.

Só me resta agradecer a todos, aos alunos, que me acolheram e cativaram de maneira muito carinhosa, ao professor Tiago, pela coragem de tratar tal assunto com tanta intensidade e ainda mais com um livro como este, que definitivamente não foi escrito para crianças, mas, que serviu para mostrar a competência e a grandeza de profissionais, que como ele, está de fato, comprometido com a Educação em todos os sentidos da palavra; e claro a todo o corpo docente do Colégio Logosófico meu muito obrigado pelo carinho e respeito. Saibam que é recíproco o sentimento.


*professor de literatura do filme A Sociedade dos Poetas Mortos

domingo, 17 de julho de 2011

Alm’inha-minh’alma




Alm’inha-minh’alma

Adriana Kairos





Fui tão seca ao deserto de minh’alma
Beber de tudo o que lá deixei
Eu estava tão sedenta
Que força em mim não tinha
Tão seca
Tão desértica
Como quem pede Coca-cola num bar
Por impulso clamei por ela
- Alm’inha-minh’alma...
Mas dela resposta não vinha.

Pobrezinha...
Era agora tão erma
Tão seca, tão vazia, tão sozinha
Que nem areia nela tinha
O vento seco que por ela passou
A balançou como latinha oca a beira da pista
Não encontrei mais nada
Naquele imenso mundo-de-tinha
Que se tornou a alm’inha-minh’alma...

Justo ela
Tadinha...
Justo ela que tinha tanto
Tanto de tanto ela tinha...
Tinha tesouros, desejos e pecados
Carrossel, balão e fitinha
Tinha sonhos, palavrões e dúvidas
Dedal, carretel e linha
Tinha amores de verdade
E tinha amores de mentira
Canudo, refrigerante e latinha
Ela tinha tanto
Tanto ela tinha
Ah... alm’inha-minh’alma...
Não me refresco mais com o que tinha.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

De Superstições e Manias



De Superstições e Manias

Adriana Kairos



Como uma criança tola, aprendi a soprar o tempo sem sequer questioná-lo do porquê de suas pirraças. Alguns dias meu ar se esgota e fico roxa de tanto soprar, contudo, o tempo não passa. Teimoso... Me parece pesado, cansado. Talvez até mesmo de mim.

Nesses dias de tempo cansado, pirraçado, nem meus livros me trazem qualquer repouso. Me sinto aprisionada em mim mesma e escrevo como quem bate a porta do cativeiro angustiada por sair.

Em outros, nem faço esforço. Na verdade, nem me movo que é pra não espantá-lo e implorá-lo, na minha carente paralisia, que fique um pouquinho mais. Que fique um pouquinho mais e me conte mais histórias. Dessas histórias que se trazem de longe, que se trazem de onde só imaginação espantosa pode achar. Mas, mesmo assim quietinha passam as horas...

As horas são crianças mudas brincando de ciranda com o coxo ponteiro bobo do meu relógio. Não param. Não, essas crianças não param. Não param. E foram elas que me ensinaram a soprar o tempo. Como mandinga, como amuleto, por superstição, por brincadeira ou por medo... Aprendi. E sopro... Hoje um pouco mais devagar que ontem. Hoje tenho que soprá-lo assim, bem de leve, quase como uma carícia morna. Como quem sopra dentes-de-leão ou bolhas de sabão... Bem devagar... Devagarzinho... Não sei se faço tudo isso por medo. Às vezes nem sei se quero fazê-lo. Que estranho! A gente vai adquirindo cada mania com o passar do tempo.

domingo, 3 de abril de 2011

Olha no que deu o "mamãe querida..."




Gente,

É com um imenso prazer que apresento Raul Kairos, meu filho, mas, acima de tudo um talentoso aprendiz de escriba. A partir de hoje, ele terá sua própria coluna aqui no Cartografia e quinzenalmente (ele prometeu) teremos textos novos. Que chic, não! Ai, ai, “tesouro”! rs


Muito bem, convido a todos a ler o seu conto de estréia: Rafael, o nerd - na balada, e aviso, tem mais de RKairos por vir. Tenho certeza de que vocês vão gostar. O moleque promete!


Bjks e boa leitura!
(texto abaixo)

Rafael, o nerd - na balada


Rafael, o nerd - na balada

Raul Kairos

- Oi. Eu sou Rafael.

- Posso saber seu nome?

Imaginando a resposta, analisando os fatos e pensando no que dizer depois, Rafael gela por dentro. Nerd que é, não muito experiente nesse tipo de diálogo, precisara tomar alguns drinks antes de ter esse ímpeto.

- Sim, Camila.

Ponto para Rafael que, mesmo que por trinta segundos, estabelecera diálogo com um ser do sexo oposto.

Sua mente rodava, procurando a próxima atitude quando disparou:

- Você é de uma magnitude esplêndida! Quer sair comigo?

Antes de receber a resposta, toda sua vida passou diante dos seus olhos e seu coração bateu demasiadamente forte. Respirava ofegante, sem se deixar perceber. Lembrou de todas as operações matemáticas complexas que já acertara na vida e de repente... a resposta.

- Não! Que droga de papo é esse? Se enxerga! Quem você acha que é? O Bill Gates!? E que óculos é esse?

Um dia ela se arrependerá amargamente. No entanto, hoje, conseguira deixar o, tão brilhante, jovem sem jeito. Bastava dizer não. Sutil...

Sentiu que já tinha se aventurado o bastante por uma noite e decidiu terminá-la por ali. Arrasado, Rafael foi embora.

- Game over.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A minha língua




A minha língua



A minha língua

Lambe

A borda direita da folha

De onde palavras suicidas se atiram

Estúpidas,

Não morrem

Partem-se em dois

E sangram em minha língua

Versos insuficientes

Boca aberta

Caneta em punho

Precipitam-se vocábulos

De minha mente

Doente

Ao abismo branco

Infinito

De uma folha de papel

Vexada

Sangrada

Lambida

De palavras vãs

Carentes de ti.




Adriana Kairos

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

VERMELHA


Vermelha



Hoje amanheci mais vermelha do que sempre.
Apesar do rosa estar na moda
Esta manhã, um sentimento encarnado marcou
Meus pulmões e meu ânimo.

Confesso que também tive medo
Cheguei até a desacreditar
Intuição X senso comum

Muito está por vir, eu sei
Alegrias e decepções também
Como não?

Mas, hoje, primeiro de janeiro de 2011
Ouvi de uma irmã de condição dizer
“Sim, a mulher pode!”
Por algum motivo, acreditei

Inspirei esperança
Enchi-me de coragem
Amolei minha foice
Tomei meu martelo
Ergui os punhos...
A luta continua, companheiras!



Adriana Kairos

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Manifesto


Manifesto

(Victor Jara)


Yo no canto por cantar

ni por tener buena voz

canto porque la guitarra

tiene sentido y razon,

tiene corazon de tierra

y alas de palomita,

es como el agua bendita

santigua glorias y penas,

aqui se encajo mi canto

como dijera Violeta

guitarra trabajadora

con olor a primavera.


Que no es guitarra de ricos

ni cosa que se parezca

mi canto es de los andamios

para alcanzar las estrellas,

que el canto tiene sentido

cuando palpita en las venas

del que morira cantando

las verdades verdaderas,

no las lisonjas fugaces

ni las famas extranjeras

sino el canto de una alondra

hasta el fondo de la tierra.


Ahi donde llega todo

y donde todo comienza

canto que ha sido valiente

siempre sera cancion nueva.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Intimidade



Intimidade


Amassei pão, varri casa, tratei dos bichos, limpei cu de criança, dei porque tinha que dar, mas nada me deixa mais feliz que momentos como esses, em que estou comigo e com meu vestido branco de laços. Comida pronta, casa arrumada, bichos alimentados, criança limpa, homem satisfeito e longe daqui. Eu e meu vestido. Eu, o meu vestido e o vento. Eu, meu vestido, o vento e suas músicas. Suas músicas e minhas mãos. Minhas mãos no tecido macio e fino do vestido e minhas coxas. Minhas coxas, meus gemidos... Meu riso. Minha secreta felicidade.




Adriana Kairos

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

El amor


El amor nos pone locos

Y La locura nos mata

Un rato a diario

Y a diario La vida renace

Como El amor y La locura

Que me lleva a ti

a morir

a morir...





Adriana Kairos

"Às vezes, tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconscientes, eu antes não sabia que sabia."

Clarice Lispector