sábado, 4 de dezembro de 2010

Silêncio em casa


Silêncio em casa


Por alguns segundos o silêncio. E a vida deixou de ser naquele instante. Na verdade, o silêncio ecoou por anos, num estridente grito sem som de lágrimas quietas no desamparo frágil da noite. Noite após noite. Mas ninguém ouviu. Ou não quis ouvir... que seja! No entanto, será que ela pôde ver o remorso antes da viagem? Porque ele estava lá, na sua frente, diante dos seus negros olhos de jabuticaba. E faria alguma diferença vê-lo? Seu corpo havia se habituado a calar; roxeando mágoas a cada dia. Derramando angustia baixinho pra ninguém escutar. Até os pequenos que antes choravam e gritavam, intercedendo e clamando piedade, de tanto presenciar covardia, também se acostumaram às cenas. Repetido e velho filme mudo, sons surdos, cheiro de terror da cozinha à sala de estar. E gritar pra quê? Se o silêncio sempre fora a resposta. Você meteria a colher? Discreto odor de pólvora. Terrível sabor de sangue na boca. Derradeiro gosto. O 190 demora, não intercepta o disparo. Ninguém viu nada. Essas coisas poucos vêem. Quiçá ouvem, quanto mais interfere. Ninguém. Calado sentou a seu lado. Em ataranto, ali fincado, ouviu a silenciosa agitação das lágrimas dos órfãos. Filhos da sua embriaguez, filhos da sua estupidez, filhos da sua infelicidade. “O que foi que eu fiz?”- perguntou a si mesmo num breve segundo de lucidez. Ah... a lucidez, a mudez cega das inquietações. Enfim, chegaram. Contudo, só encontraram uns três pares de pequeninas jabuticabinhas assustadas ofegando sons vazios de horror, de tristeza, de abandono e de solidão. O autor da trama infeliz fugiu dali, na calada da noite. E como já era de se esperar... ninguém viu. Foi o que disseram. O silêncio permanece na casa.



Adriana Kairos

sábado, 16 de outubro de 2010

O meu B-612


O meu B-612




A vida passa tão apressada quase não a posso alcançar. Meus braços se estendem, se esticam, num anseio louco de tocar o intocável que passa e vai. Esvai-se, então, o inatingível por entre os meus dedos, lisos, como a pressa do vento. Chego a pensar que as pessoas, os carros e as coisas são apenas vultos velozes a passar por mim. É tudo tão rápido. Zum, zum, zum... E eu aqui.

Vivo em um mundo estranho, só meu, o meu mundo-meu, aonde o tempo não entra; aonde a velocidade da vida não existe. O que há e o que me conecta ao mundo-seu é só o liso zum-zum-zum do vento a minha volta. Não há tempo, pessoas ou coisas; nada e nem ninguém me aborrece, apenas as indagações da minha flor - a mente.

Permito-me, vez ou outra, esconder-me neste refúgio. Como um ponto de luz num espaço vazio do meu ser, a redenção dos mortais degredados de Eva, o respirar profundo e descompromissado de quem só deseja viver. Vivo! Enquanto dá. Longe de vida-alheia, da vida-inteira que a vida preparou para mim. O meu silêncio, o meu estado-outro, o outro eu de mim em mim mesmo. Nem eu o conheço. Sorrio apenas a esta serenidade perturbadora que me rodeia nestes instantes de fuga de mim; quando me aproveito de uma migração de pássaros selvagens para sair daqui... Fuuuuuuuuuu... E fujo... Dessa vida com pressa, desse mundo-seu direto, para o meu lugar.

Tocar o céu e o sol com a mão, rir do som das bolinhas de gude de um menino, deixar-me ser acariciada pelo vento, saber que este momento é só meu me liberta do medo, da solidão que eventualmente flerta minha alegria, do breu que insiste se esconder num cantinho qualquer de mim.

Entrego-me, então, ao miraculoso, ao sagrado e imutável segredo que é viver... Vez ou outra... Apenas... Entrego-me. E o faço sem reserva e sem medo. Sem medo! Este já não me assusta mais. Sei que sou mais que músculos e ossos. Sou SER. Orgulho-me disso. Dessa coisa de ser habitante único e soberano do meu próprio B-612. Tenho minha flor e meu vulcão e isso é tudo o que me basta.

Nunca quis ter nada, meu sonho, desejo absoluto que persigo incansavelmente é SER! E viajo sem bagagens nesta busca. Não quero nada que me prenda aqui, ali ou acolá. Fecho os meus olhos e vou. O SER viajante é um ser em constante aprendizagem, em constante liberdade, capaz de ajudar outros SERES a serem seres infinitamente mais sonhadores, humanos, transformadores e felizes. Um pequeno príncipe ele é.

É engraçado eu falar agora sobre a felicidade. Acho que nem acredito nisso. Vivo um momento de total descrença deste e de outros sentimentos. Mas, veja bem, sinto isso hoje... Por enquanto. Pode ser que eu mude de idéia e volte a crer no feliz. Talvez jamais eu tenha deixado de crer, escondi-a dobradinha em mim... Não sei... Não sei... Por hora sigo assim, limpando o meu vulcão.





Adriana Kairos

domingo, 19 de setembro de 2010

Sem-voz


Sem-voz

Penso em voz alta
No entanto, grito em silêncio
Por uma tímida ignorância
Plantada conscientemente em mim.

Não sei bem se ignoro
Apenas sei do que sinto, do que vejo
Mãos estendidas
Valha-me Deus que chova...
Justiça na terra

Dizem que não sei como me manifestar
Dizem que o faço de modo estranho
Os jornais, as revistas, a TV
Nenhum!
Nenhum deles me perguntou nada
Mas souberam bem o que dizer
Em suas ladainhas compradas
Valha-me Deus! Valha-me...
Valha-me Deus, meu Deus!

Passeatas, gritos de ordem, mãos dadas
Esperança arrastada nas sandálias
Cassetetes, tiros, gás
Botas esmagadoras de esperanças
Fastientas
Porradas!
É proibido lutar

Insisto.
Não posso conceber a fome democracia
Paz, terra e pão
Não estou pedindo demais
É meu direito
Está na constituição

Me chamam sem-terra, sem-teto
Sem-voz me defino
Morro.
É mais um apenas,
Anunciam os jornais.

Na terra do semeador da ignorância
Minha morte não dá semente
Meu sangue rega a infâmia
Valha-me Deus dessa gente!

Debaixo do teto de estrelas
Meu corpo não brilha, ofusca
Os interesses alheios
Daqueles homens de boa vontade

Sou erva daninha no asfalto
Sou o marginal do campo
Valha-me Deus que chova logo
Justiça no meu País.

domingo, 29 de agosto de 2010

La Carta


La carta

En las vacaciones me voy a Francia y allá dejaré tu recuerdo. Prometo olvidarte. Declaro que al volver jamás diré otra vez tu nombre.
Te amo es verdad, pero, no puedo más. Escribo esa carta que es para expurgarte de mis pensamientos. Son muchas las ganas que tengo, de verte, de abrazarte, de borrarte, de matarte... un poquito a diario, sin dolor, sólo con la nostalgia de no tenerte más.
Por las mañanas doy paseos en el parque. Aquel donde hay bellos jardines. Te encuentro y te beso en un verano que ya no existe más.
Por eso, con esa carta te pido...
Como no puedo, no consigo...
Mátame, por favor.


Adriana Kairos

sábado, 17 de julho de 2010

Chimamanda Adichie: O perigo da história única




Chimamanda Adichie: O perigo da história única

Se você ainda não tinha ouvido falar do TED não se preocupe, a Leia Brasil te apresenta agora. A TED é uma conferência anual que reúne os mais importantes pensadores do mundo que são desafiados a fazerem a melhor apresentação de suas vidas em 18 minutos. No TED.com eles disponibilizam, de graça, as melhores apresentações e performances sobre vários temas, que vão de tecnologia e entretenimento a design, negócios, ciência e cultura.

Personalidades como o político Al Gore, a escritora Isabel Allende e o pop star Bono Vox já passaram por lá, mas graças a dica da professora Susan Blum, uma velha amiga da Leia Brasil, um nome em especial nos chamou a atenção. Estamos falando da participação da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie.

Para quem não conhece um breve histórico: Chimamanda mudou-se para os Estados Unidos com 19 anos para fazer faculdade, seu primeiro romance Hibisco Roxo foi publicado em 2003 e, em 2006, com a publicação de Meio sol amarelo a escritora foi agraciada com o prêmio Orange Prize de melhor ficção.

Em sua palestra Chimamanda Adiche fala sobre o perigo das histórias únicas e de como um único olhar sobre uma pessoa, um povo ou uma cultura é limitador e gera esterótipos difíceis de serem superados. Não deixe de ver.

ASSISTA O VIDEO!!!


(fonte:Leia Brasil)

sexta-feira, 9 de julho de 2010

No charco


No charco


Estava mergulhada em um charco de sentimentos bem familiares. Cheiravam mal, mas não os culpava, esse odor vinha do seu íntimo. Estava plena de uma demasiada tristeza. Não sabia se conseguiria libertar-se. Tão pouco se queria. Pois todas as vezes que se cobrira de flores, cheirando como a primavera; logo tropeçava nessa poça, nessa lama. Se fora empurrada ou se caia sozinha isso já não importava. Acostumou-se com o frio, com os gritos, com o horror.

Sob esse charco denso de pustulentas chagas dançava com a loucura, a linda dama em traje de festa. Dançavam sob a luz da lua de rosto colado, rindo de si mesma, sem discernir-se. Admirando sua sombria valsa através dos espelhos do grande salão da sua alma.

Enquanto dançava, encontrou seu lado negro num canto escuro de uma dessas noites. Sentiu medo, mas não correu. Fascinou-se ao ver em seus olhos negros, tão profundos, sentimentos avessos aos daquelas pessoas que a rodeavam, trazendo olhos imensamente vazios. Tentando convencer-lhe de que se importavam. Ela não os acreditava.

Passou a ver a morte e a dúvida caminhando de mãos dadas em direção às flores negras que brotavam maravilhosas em um canteiro sórdido, junto a seus olhos. Eram botões extraordinários que desabrochavam no breu sob uma carregada chuva de um vermelho vivo... Adormeceu.

Quando acordou, aqueles dos olhos imensamente vazios, levaram-na a ter com um ser de uniforme alvo, que cuidou de seus regadores com ataduras brancas. Deu-lhe algo de beber e algumas pastilhas ruins. Vestiu-a também com um casaco de longas mangas. Talvez quisesse protegê-la do frio que havia em si.

Agasalhada, mas tremendo. Sentou-se a beira daquele charco, num canto qualquer de uma sala desconhecida, próxima a uma janela. De onde passou a admirar, sem conseguir entender, a rua e as pessoas que incrivelmente escapavam de suas poças.





Adriana Kairos

quinta-feira, 1 de julho de 2010

domingo, 20 de junho de 2010

Depoimento


Depoimento




Eu vi quando aquela mulher saiu correndo, moço. Foi depois do tiroteio.

Desceu correndo descalça, tinha os olhos aperreados; eu não sabia o porquê.

Tava com um vestido de chita barata de florzinhas, tão alvinha. Ela chorava muito.

No fim da rua muita gente se amontoava pra ver. Os miolos do neguinho espalhados pelo chão e a dona descalça acariciando o seu rosto, colocando-o em seu colo como se o pusesse pra dormir. Acho que o seu choro foi ouvido por todo o morro. La Pieta.

No chão, lavados pelo sangue do moleque, uns cadernos e uma caderneta de escola.

Tinha muita gente indignada, diziam que era menino bom e que voltava da escola. Eu mesmo já tinha visto ele no "pacote" lá no mercadinho.

Eu vi tudo isso moço, mas não consegui chorar não. Isso foi meio-dia.

Só chorei a noite, na hora do jornal quando o repórter falou assim: "Ação da polícia mata menor envolvido com tráfico de drogas no morro..."

Porra moço, o neguinho era estudante... o moleque era estudante...





Adriana Kairos

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Poema à boca fechada - José Saramago


Poema à boca fechada


Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.


(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)

sábado, 5 de junho de 2010

Os Três Mal-Amados


Os Três Mal-Amados
João Cabral de Melo Neto

Joaquim:
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.

sábado, 24 de abril de 2010

Metalingüísticamente penando


Metalingüísticamente penando



Todas as vezes que penso em escrever algo me surpreendo com a minha impossibilidade de fazê-lo. Não sei, mas penso que tudo o que eu queria dizer já foi dito, contudo, não foi escrito; ficou pr’eu escrever. No entanto, me sinto muito presunçosa por isso e silencio na página branca iluminada do meu computador. Ela não ilumina as minhas idéias, nem tampouco me apresenta novidades, só a imagens que já conheço. E me espanto no emudecer dos meus dedos por não poder descrevê-las melhor.

Acho que vou enlouquecer. Todas as coisas me surpreendem, porém nada mais me choca. Sinto muito medo disso. Apavoro-me ao perceber que o cotidiano tornou-se comum e que seus personagens são apenas mais alguns personagens baratos de uma historinha qualquer. Tento procurar neles o novo, mas só encontro o velho em nova edição. É como se o medo, a fome, a violência e a dor ganhassem capas novas a cada novo número.

E os números?... Meu Deus, os números... Nem eles me roubam mais palavras, só letras rasuradas aqui ou ali. Só não me calo porque não é do meu feitio. Em mudas palavras, ou melhor, em mudas letras grito sons de esperança. Em mim, fervilham vozes jamais ou poucas vezes ouvidas, que vou borrando sobre o papel, ou diante da tela fria. Vozes em espera. Fé (quase inabalável) de que algo vai mudar. E é por essa esperança que muitos bebem; que muitos choram; que uns rezam e outros oram: “vai tudo melhorar”.

Enquanto isso, o poeta sofre com a mudez de sua poesia, com a fuga das palavras e a palidez das folhas vazias. Fugaz é a poesia ante a bala perdida, ante a timidez da mão pequena esmolando “algum”, clamando comida, implorando... Implorando. Sublime é a letra que fotografa e revela as vidas perdidas que os olhos não veem. É por isso que, todas as vezes que penso em escrever algo me surpreendo com a minha impossibilidade de fazê-lo...



Adriana Kairos

terça-feira, 13 de abril de 2010

Chuvas de verão


Chuvas de verão



Na mesa era parca a comida
Mas nunca se viu tanto amor num só lugar.
Estendidas no varal roupas coloridas
E no telhado roupas brancas pra quarar.

Vieram do lixão alguns livros
Que adornavam a velha estante
Entre paninhos de crochê e bibelôs de vidro
O sonho de lê-los era constante.

Também tinha uma Bíblia aberta
Diziam que era pra proteger.
Mas como um livro aberto ampara
A quem não o pode ler?

Muita renda a dona tecia
Mas toda a renda ainda era pouca.
O marido cansado volta da lida
E da panela o alento, o cheirinho da sopa.

Os moleques limpinhos e buchudos
Corriam de pés no chão atrás do vira-lata
Estavam felizes os meninos
O pai trouxera balas e goiabada em lata.

No horário nobre se reunia a família
Diante da tevê cheia de chuviscos e fantasmas
A notícia da chuva que viria
Trouxe lhes o medo. Os assombrava.

A noite foi de vigília
A cada gota, uma parte da encosta descia
Quando lhes pediam pra sair resistiam
“Não temos pra onde ir”.Diziam.

No fundo sabiam o que os esperavam
Acalmavam as crianças quanto ao que poderia acontecer.
Os barracos vizinhos já desceram.
A esperança será a última a morrer.

Abraçados e com medo
Esperavam por uma providência divina.
Pediram até perdão pelo pecado
De haverem nascido assim tão desventurados.

Então numa grande avalanche
Os livros a Bíblia e a estante
O vira-lata, a tevê e a família.
Sucumbiram naquela noite que chovia.

E ao vivo noticiaram na tevê
Que aumenta a cada hora
O número de vítimas
E que amanhã ainda vai chover.







Adriana Kairos


(Este texto foi escrito à dois anos, e infelizmente, nunca foi tão atual como hoje. Sigo de LUTO pelas vítimas do Poder Público do meu ESTADO...)

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Inspira... Expira... Uff...


Inspira... Expira... Uff...

Inspirei...
E senti um perfume diferente.
Suave
Intenso
Tomou-me os pulmões...
Tomou-me a alma.
Logo senti sua sombra
Quente
Passeando
Entre minhas pernas...
Entre meus peitos...
Na minha boca...
Me entreguei!
Expirei...
Voz estéreo
Ao pé do ouvido
Notas em palavras.
Canções de amor à capela
Balê de pernas
Braços
Cabelos
De corpos suados.
Desejos sobre a cama.
Lembranças de ti...
Uff...



Adriana Kairos

segunda-feira, 22 de março de 2010

O sonho de milhões


O sonho de milhões

Pela manhã, o sol morninho pediu licença a cortina da sala. Curioso, entrou pra espiar. A cortina bailarina de rendinha branca dançava ao som da brisa faceira que entrava pela frestinha da janela. Durante todo o dia só se ouvia os sons da casa: o relógio da cozinha e o seu tic tac, a boa e velha geladeira com o seu motor pestanejando num liga e desliga constante.

À noitinha o sol se despediu, cumprimentou a lua, que também quis entrar pra ver aquela casa tão bonitinha, com suas coisinhas todas no lugar e um gostoso aroma de pinho. Então de repente, como um general forte e imponente a porta se abriu, titilando o molho de chaves sentinelas. Chegou o dono da casa! Ele entrou e nem reparou que a lua o visitava. É que estava cansado. Arrastava o corpo como se um caminhão estivesse em suas costas, mas estava feliz, estava em casa. Respirou fundo e reconheceu o seu canto.

Ligou o som e espalhou música por toda parte. Escancarou as janelas pra noite entrar sem cerimônias e a cortina bailou ainda mais. Assoviava quando entrou no banheiro. Banhou-se em chuva quentinha com pedrinhas cheirosas de espuma. Enroladinho saiu de lá. Abriu uma gaveta amiga, de onde tirou uma malha com um cheirinho bom de sol, e a vestiu como a um abraço.

Foi a cozinha e fez um pouco mais de barulho; esquentou algo pra comer. Satisfeito resolveu fechar a casa outra vez, mas agora percebera a lua e a convidou pra ficar. Amanhã tinha que voltar ao batente antes de ver o sol entrar pela janela da sala.

Pulou na cama quentinha, tão fofa quanto uma nuvem. Aconchegou nas cobertas como quem se aconchega aos braços da mãe. Mas esqueceu a janela do quarto aberta e um vento traiçoeiro açoitou seus trapos fazendo-o acordar debaixo de uma marquise da Avenida Presidente Vargas.




Adriana Kairos

terça-feira, 16 de março de 2010

A complicada arte de ver


A complicada arte de ver


Rubem Alves
colunista da Folha de S.Paulo



Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa _garrafa, prato, facão_ era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas _e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso _porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver_ eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

Rubem Alves, 71, educador, escritor. Livros novos para crianças e adultos-crianças: "Os Três Reis" (Loyola) e "Caindo na Real: Cinderela e Chapeuzinho Vermelho para o Tempo Atual" (Papirus).
Site: www.rubemalves.com.br

(fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u947.shtml)

quarta-feira, 10 de março de 2010

Cartografia N'alma



Cartografia n'alma


Sinto-me livre quando escrevo. Permito-me viajar.
É como se cada folha se tornasse um grande "mapa múndi". Onde cada letra, cada acento, cada ponto, fosse um ponto de uma cidade a se explorar.

Por alguns segundos fecho os olhos e sobrevôo cada cantinho. Sendo escuro ou claro, estando cheio ou vazio, vou lá conferir com prazer cada palavra, traço ou vírgula desse caminho. São diferentes as latitudes e longitudes; as linhas imaginárias são as minhas preferidas. Também há lugares de histórias tão absurdas, mas tão reais, que merecem ser escritas.

E assim, vou planando pelo vento das palavras. Tentando saciar essa íntima vontade de cartografar algumas histórias, que só existem em mim e que às vezes imploram atenção. Querem ser vistas, encontradas, descobertas..."-Contos à vista!!!"

Sigo, então, desbravando o meu inconsciente. Descobrindo em mim, terras antes jamais vistas. Respeitando cada palavra nativo-amigas que encontro por lá.
Abraçando com carinho as pequenas mutiladas.
Sei que cada uma se faz entender a seu modo, cada uma tem sua razão de ser.

Por isso, as transcrevo assim como vêm, "tá". Dá um charme especial ao mapa. Uma liberdade a mais ao vôo.
Cartografia é arte que do mar vem. Mas escrever é pra quem tem um infinito, como o mar, na alma.






Adriana Kairos

quarta-feira, 3 de março de 2010

Pensamento


Pensamento


Penso
Que o pensamento é o passar do tempo sem ação.
A ação arquitetada
Seguida de um sim
Ou de um não.

O pensamento são escolhas
Ações e vidas
Em bolhas de sabão
Viajando no pensar
De coisas boas ou más.

Tão inocente quanto uma faca cega.
Mais letal que a poesia
Quando encontra o leitor
O espanto do poeta.





Adriana Kairos

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Ana e o Mar


Ana e o Mar
O Teatro Mágico
Composição: Fernando Anitelli

Veio de manhã molhar os pés na primeira onda
Abriu os braços devagar e se entregou ao vento
O sol veio avisar que de noite ele seria a lua,
Pra poder iluminar Ana, o céu e o mar

Sol e vento, dia de casamento
Vento e sol, luz apagada no farol
Sol e chuva, casamento de viúva
Chuva e sol, casamento de espanhol

Ana aproveitava os carinhos do mundo
Os quatro elementos de tudo
Deitada diante do mar
Que apaixonado entregava as conchas mais belas
Tesouros de barcos e velas
Que o tempo não deixou voltar

Onde já se viu o mar apaixonado por uma menina?
Quem já conseguiu dominar o amor?
Por que é que o mar não se apaixona por uma lagoa?
Porque a gente nunca sabe de quem vai gostar

Ana e o mar... mar e Ana
Histórias que nos contam na cama
Antes da gente dormir

Ana e o mar... mar e Ana
Todo sopro que apaga uma chama
Reacende o que for pra ficar

Quando Ana entra n'água
O sorriso do mar drugada se estende pro resto do mundo
Abençoando ondas cada vez mais altas
Barcos com suas rotas e as conchas que vem avisar
Desse novo amor... Ana e o mar

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Tempo são


Tempo são


E a vida segue num tic
De tempo tac
De horas que somem
Relógios e seus ponteiros
Pessoas vão e vem

Contudo, as horas
Não somem sozinhas
Elas levam consigo
Pensamentos
Alguns desalentos
Porém outros
Teimam
Não deixar-me só

Mais uma vez é o tempo
Vida resumida em horas
Frágeis
Com suas asas invisíveis
De delicada crueldade
Atraindo-me com seu sopro
Suave
Manso
E quente
À lembranças
Que meu espírito
Atormentado
Tem medo de lembrar

Assim como um imã
Para coisas que machucam
Segue meu espírito fugindo
Em vão
De você

Sua sutil presença me assombra
Meu fantasma
Meu remorso
Suas asas negras
A me guardar

Sonho e não te encontro
Só no som do silêncio te vejo
E te ouço no dançar dos ponteiros
Abertos desejosos de abraçar

Danço contigo sobre o relógio
Rodopiando nas pontas
Como uma bailarina
Sobre cada número
Fugindo da rasteira que o segundo
Possa nos dar

Tempo seu e meu
Hora minha e sua
Mesmo se você não está
É hora dos meus remédios
Avisam-me.

E a vida segue num tic
De horas tac
De esperanças mortas
De ter você
Outra vez.



Adriana Kairos

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Cegueira Funcional


Cegueira Funcional


Sinais e signos embaralhados. Desordenados. Enxergo, mas não vejo o que você vê. Cartas ao vento, cartazes e placas. Letras pretas, grandes. Pequenas, encarnadas. O problema é não saber... é não entender porque o outro vê o que eu só enxergo. Afinal, quais são os seus significados? Oh danado! Um amontoado de pedras desenhadas pr’eu cair.

Outro dia, bati com a testa num poste na angustiante tentativa de juntá-las, enfim. E o que aconteceu é que quando eu havia terminado as últimas já não lembrava mais quais eram as primeiras. O ônibus passou. Pra onde vou? Pra onde vão? Sinto-me perdido. Às vezes sem chão.

Vem mais um ai! Pra onde vai esse ônibus?– pergunto. O que significam? O que dizem? Qual a razão d’eu não poder entender... d’eu só enxergar o mundo que você vê?




Adriana Kairos

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A tourada


A tourada




Percebeu que o inverno se aproximava quando as folhas de cartas, telegramas e postais cobriram o chão do quarto, caídas do alto das mãos de um carteiro. Intensas rajadas de angústias frias, tempestades de terror por dentro e uma estranha sensação de contentamento. Dava início a um cenário denso, tenso, por toda miscelânea de coisas que sentia. “O inverno, o inferno, está voltando”.- pensou.
Na primavera dos seus sonhos todas as cores se apresentaram sorridentes. Foi gracejada com flores perfumadas. Tomada por beijos estrelados sob noites de formosa lua e pelas manhãs, o seu sol vinha-lhe abraçar o corpo para espantar qualquer brisa fria que a tivesse feito arrepiar a pele. Jamais sentiu tanta felicidade. Cria que o paraíso era assim, ali.
No advento do verão, seu sol a fez arder de paixão. Quentes brisas a envolvia pelas manhãs e noites. Começaram a transpirar intensos desejos, loucuras sodómicas, na invenção de um novo Kama Sutra. Era o início das tempestades da estação. Sua personalidade dócil, acentuada por uma criação puritana, apesar de amar perdidamente a força e a majestade do seu astro, vivia em constante choque com a nuvem carregada e selvagem de estrogênios e lascívia, que ele trazia. Mas no fim, quase sempre, se rendia. Bastava só que ele trovejasse a sua urgência que ela logo aspergia a sua perdida puberdade a cama, sua “Plaza Del Toro”, onde toreava, sem força ou honra, contra um animal que lhe vencia sempre e sob aplausos (dos amigos). “O macho”.
No outono, ele não era mais o seu sol, mas um pesadelo cigano que ia e vinha à revelia. Ele era obsessivo e esse sentimento a incomodava, no entanto, era incapaz de reagir. Perguntava-se o por quê, mas não obtinha de si mesma a resposta. Contudo, só a remota possibilidade de não vê-lo, por um tempinho que fosse, dava-lhe novo fôlego. Assim, sentiu-se agraciada, de certa forma, quando mais uma vez ele sumiu. Deixando-a prisioneira sem defesa, voz ou direitos, por muitas semanas, em seu inóspito quartinho. Durante todo esse tempo teve a mente torturada com mensagens sádicas de regresso, enquanto definhava em desespero, medo e solidão. Regava em si a baixa-estima e depreciava-se por lhe faltar coragem de agir em seu próprio favor. Desenvolveu, em sua clausura, seu ópio mental, na tentativa de transpor, para outro e qualquer lugar, sua alma. Entoando uma antiga canção francesa, como se fosse um mantra, por várias horas. “Ne me quitte pás” era entoada e transcrita com exímia caligrafia em papéis perfumados a Channel, por pelo menos, algumas centenas de vezes. Como uma súplica doentia de uma mente confusa, ocultando em seu canto as intenções nefastas do seu coração.
Pressentiu a sua volta quando o frio atacou-lhe os ossos. Ainda assim, prosseguiu no que ruminava há tempos. E em gestos premeditados, arrumou cuidadosamente os cabelos, pintou a boca de carmesim e os olhos de preto. Pôs seu melhor vestido, um de saia godê, encarnado, com um suntuoso decote as costas e perfumou a nuca com o Channel. Como num ritual, escreveu num papelzinho, com as letras caprichosas da prática das transcrições constantes do seu lamento francês, algo que deixou sob o frasco do perfume. Também preparou algo para beber, o qual tragou num só gole. Ao som das castanholas do tempo, pôs-se ao centro da “Plaza” empunhando em uma das mãos a muleta, igualmente vermelha, de torear; do jeitinho como o tal a recomendara.
Ventos, demasiadamente, fortes açoitaram todo o lugar, levantando as folhas do chão, desalinhando os cabelos da moça, metodicamente, preparados para a ocasião. E derrubando o frasco de perfume sobre o bilhetinho, manchando-o com o aroma que tantas vezes marcou aquelas touradas. O vendaval anunciava a presença dele. Tomou o derradeiro gole, fez pose de toureira e danou a girar, ensandecida, sobre a cama. A primeira investida caiu desmontada sem os sentidos. Ele não se fez de rogado. Arrancou, à força, o vestido encarnado, numa urgência e necessidade, tal qual um animal. Borrou-a com o próprio batom com beijos e carícias jamais vistas. Não fez conta da sua indiferença, deixando-o fazer todo o trabalho, sem ao menos resistir a sua violência. Lambuzou-se. E mais uma vez, estatelado sobre a “Plaza”, sentiu-se o rei, o homem, o macho! Julgou que ela dormia quando se levantou a reclamar a desordem do quarto, a janela aberta e o frasco de perfume caro desperdiçando-se sobre o móvel. Deu-se conta do bilhete manchado sob a penteadeira. Leu. Vestiu-se as presas sumindo mais uma vez.
Ela foi encontrada, dias depois, dormindo, com um ar de “La Gioconda” no rosto, abandonada no mesmo lugar.



Adriana Kairos

"Às vezes, tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconscientes, eu antes não sabia que sabia."

Clarice Lispector