domingo, 19 de setembro de 2010

Sem-voz


Sem-voz

Penso em voz alta
No entanto, grito em silêncio
Por uma tímida ignorância
Plantada conscientemente em mim.

Não sei bem se ignoro
Apenas sei do que sinto, do que vejo
Mãos estendidas
Valha-me Deus que chova...
Justiça na terra

Dizem que não sei como me manifestar
Dizem que o faço de modo estranho
Os jornais, as revistas, a TV
Nenhum!
Nenhum deles me perguntou nada
Mas souberam bem o que dizer
Em suas ladainhas compradas
Valha-me Deus! Valha-me...
Valha-me Deus, meu Deus!

Passeatas, gritos de ordem, mãos dadas
Esperança arrastada nas sandálias
Cassetetes, tiros, gás
Botas esmagadoras de esperanças
Fastientas
Porradas!
É proibido lutar

Insisto.
Não posso conceber a fome democracia
Paz, terra e pão
Não estou pedindo demais
É meu direito
Está na constituição

Me chamam sem-terra, sem-teto
Sem-voz me defino
Morro.
É mais um apenas,
Anunciam os jornais.

Na terra do semeador da ignorância
Minha morte não dá semente
Meu sangue rega a infâmia
Valha-me Deus dessa gente!

Debaixo do teto de estrelas
Meu corpo não brilha, ofusca
Os interesses alheios
Daqueles homens de boa vontade

Sou erva daninha no asfalto
Sou o marginal do campo
Valha-me Deus que chova logo
Justiça no meu País.

"Às vezes, tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconscientes, eu antes não sabia que sabia."

Clarice Lispector