terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Tempo são


Tempo são


E a vida segue num tic
De tempo tac
De horas que somem
Relógios e seus ponteiros
Pessoas vão e vem

Contudo, as horas
Não somem sozinhas
Elas levam consigo
Pensamentos
Alguns desalentos
Porém outros
Teimam
Não deixar-me só

Mais uma vez é o tempo
Vida resumida em horas
Frágeis
Com suas asas invisíveis
De delicada crueldade
Atraindo-me com seu sopro
Suave
Manso
E quente
À lembranças
Que meu espírito
Atormentado
Tem medo de lembrar

Assim como um imã
Para coisas que machucam
Segue meu espírito fugindo
Em vão
De você

Sua sutil presença me assombra
Meu fantasma
Meu remorso
Suas asas negras
A me guardar

Sonho e não te encontro
Só no som do silêncio te vejo
E te ouço no dançar dos ponteiros
Abertos desejosos de abraçar

Danço contigo sobre o relógio
Rodopiando nas pontas
Como uma bailarina
Sobre cada número
Fugindo da rasteira que o segundo
Possa nos dar

Tempo seu e meu
Hora minha e sua
Mesmo se você não está
É hora dos meus remédios
Avisam-me.

E a vida segue num tic
De horas tac
De esperanças mortas
De ter você
Outra vez.



Adriana Kairos

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Cegueira Funcional


Cegueira Funcional


Sinais e signos embaralhados. Desordenados. Enxergo, mas não vejo o que você vê. Cartas ao vento, cartazes e placas. Letras pretas, grandes. Pequenas, encarnadas. O problema é não saber... é não entender porque o outro vê o que eu só enxergo. Afinal, quais são os seus significados? Oh danado! Um amontoado de pedras desenhadas pr’eu cair.

Outro dia, bati com a testa num poste na angustiante tentativa de juntá-las, enfim. E o que aconteceu é que quando eu havia terminado as últimas já não lembrava mais quais eram as primeiras. O ônibus passou. Pra onde vou? Pra onde vão? Sinto-me perdido. Às vezes sem chão.

Vem mais um ai! Pra onde vai esse ônibus?– pergunto. O que significam? O que dizem? Qual a razão d’eu não poder entender... d’eu só enxergar o mundo que você vê?




Adriana Kairos

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

A tourada


A tourada




Percebeu que o inverno se aproximava quando as folhas de cartas, telegramas e postais cobriram o chão do quarto, caídas do alto das mãos de um carteiro. Intensas rajadas de angústias frias, tempestades de terror por dentro e uma estranha sensação de contentamento. Dava início a um cenário denso, tenso, por toda miscelânea de coisas que sentia. “O inverno, o inferno, está voltando”.- pensou.
Na primavera dos seus sonhos todas as cores se apresentaram sorridentes. Foi gracejada com flores perfumadas. Tomada por beijos estrelados sob noites de formosa lua e pelas manhãs, o seu sol vinha-lhe abraçar o corpo para espantar qualquer brisa fria que a tivesse feito arrepiar a pele. Jamais sentiu tanta felicidade. Cria que o paraíso era assim, ali.
No advento do verão, seu sol a fez arder de paixão. Quentes brisas a envolvia pelas manhãs e noites. Começaram a transpirar intensos desejos, loucuras sodómicas, na invenção de um novo Kama Sutra. Era o início das tempestades da estação. Sua personalidade dócil, acentuada por uma criação puritana, apesar de amar perdidamente a força e a majestade do seu astro, vivia em constante choque com a nuvem carregada e selvagem de estrogênios e lascívia, que ele trazia. Mas no fim, quase sempre, se rendia. Bastava só que ele trovejasse a sua urgência que ela logo aspergia a sua perdida puberdade a cama, sua “Plaza Del Toro”, onde toreava, sem força ou honra, contra um animal que lhe vencia sempre e sob aplausos (dos amigos). “O macho”.
No outono, ele não era mais o seu sol, mas um pesadelo cigano que ia e vinha à revelia. Ele era obsessivo e esse sentimento a incomodava, no entanto, era incapaz de reagir. Perguntava-se o por quê, mas não obtinha de si mesma a resposta. Contudo, só a remota possibilidade de não vê-lo, por um tempinho que fosse, dava-lhe novo fôlego. Assim, sentiu-se agraciada, de certa forma, quando mais uma vez ele sumiu. Deixando-a prisioneira sem defesa, voz ou direitos, por muitas semanas, em seu inóspito quartinho. Durante todo esse tempo teve a mente torturada com mensagens sádicas de regresso, enquanto definhava em desespero, medo e solidão. Regava em si a baixa-estima e depreciava-se por lhe faltar coragem de agir em seu próprio favor. Desenvolveu, em sua clausura, seu ópio mental, na tentativa de transpor, para outro e qualquer lugar, sua alma. Entoando uma antiga canção francesa, como se fosse um mantra, por várias horas. “Ne me quitte pás” era entoada e transcrita com exímia caligrafia em papéis perfumados a Channel, por pelo menos, algumas centenas de vezes. Como uma súplica doentia de uma mente confusa, ocultando em seu canto as intenções nefastas do seu coração.
Pressentiu a sua volta quando o frio atacou-lhe os ossos. Ainda assim, prosseguiu no que ruminava há tempos. E em gestos premeditados, arrumou cuidadosamente os cabelos, pintou a boca de carmesim e os olhos de preto. Pôs seu melhor vestido, um de saia godê, encarnado, com um suntuoso decote as costas e perfumou a nuca com o Channel. Como num ritual, escreveu num papelzinho, com as letras caprichosas da prática das transcrições constantes do seu lamento francês, algo que deixou sob o frasco do perfume. Também preparou algo para beber, o qual tragou num só gole. Ao som das castanholas do tempo, pôs-se ao centro da “Plaza” empunhando em uma das mãos a muleta, igualmente vermelha, de torear; do jeitinho como o tal a recomendara.
Ventos, demasiadamente, fortes açoitaram todo o lugar, levantando as folhas do chão, desalinhando os cabelos da moça, metodicamente, preparados para a ocasião. E derrubando o frasco de perfume sobre o bilhetinho, manchando-o com o aroma que tantas vezes marcou aquelas touradas. O vendaval anunciava a presença dele. Tomou o derradeiro gole, fez pose de toureira e danou a girar, ensandecida, sobre a cama. A primeira investida caiu desmontada sem os sentidos. Ele não se fez de rogado. Arrancou, à força, o vestido encarnado, numa urgência e necessidade, tal qual um animal. Borrou-a com o próprio batom com beijos e carícias jamais vistas. Não fez conta da sua indiferença, deixando-o fazer todo o trabalho, sem ao menos resistir a sua violência. Lambuzou-se. E mais uma vez, estatelado sobre a “Plaza”, sentiu-se o rei, o homem, o macho! Julgou que ela dormia quando se levantou a reclamar a desordem do quarto, a janela aberta e o frasco de perfume caro desperdiçando-se sobre o móvel. Deu-se conta do bilhete manchado sob a penteadeira. Leu. Vestiu-se as presas sumindo mais uma vez.
Ela foi encontrada, dias depois, dormindo, com um ar de “La Gioconda” no rosto, abandonada no mesmo lugar.



Adriana Kairos

"Às vezes, tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconscientes, eu antes não sabia que sabia."

Clarice Lispector