quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A ladra


A ladra



“Corre!!! Vai!!!”

Gritou a cúmplice desesperada à ladra de pele morena, das pernas grossas. Que não pensou duas vezes e deixando o local do crime em disparada sentia que podia voar a sabor do vento.

Tomada de intensa adrenalina, a malandra, correu levantando poeira do chão depois de por nas mãos os chinelos que certamente lhe atrapalhariam a “performance”.

A carreira não levantou só poeira, ela também açoitou o vento, que fez sambar a sainha de chita branca, evidenciando as cochas castanhas, sonho de muito marmanjo.

Sabia que estava sendo seguida e de propósito soltou os cabelos, libertando os seus formosos cachos negros, talvez para refugiar-se neles depois da loucura que cometera.

Fora a primeira vez que cometera tal crime. O fez e não parecia arrependida. Levava nos lábios carnudos de dentes grandes um sorriso de plena satisfação pelo cumprimento do ato.

Mas insatisfeito mesmo estava a pobre vítima, um rapaz bonito, alto e bem apanhado que não se conformou de ter sido roubado daquele jeito e que após o susto, partiu em perseguição a meliante.

“Corre, corre!!!”

Contudo, já não adiantava mais gritar. O rapaz agarrou a moça e tomou de volta o beijo que lhe foi roubado.





Adriana Kairso

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Delirante


Delirante


Os esmaltes descascados evidenciados em mãos pálidas sobre o rosto, o vestido vermelho, rodado rodando sobre a cama num balé de êxtase, de loucura, de delírio, de torpor. Maquiagem borrada. Olhos negros de uma solidão profunda. Boca tremula, seca de saudade ri de desespero e desilusão. Última esperança na dança daquele palco insólito, sem platéia, sem amor.
Não bebeu nada. Só lágrimas salgadas de vazio, tormento, lamento do que nunca foi. Do que poderia ser. Do que deveria ser. Das coisas que não aconteceram, das que aconteceram sem ter sido como as que quisesse que fosse.
Tropeçou nos lençóis embolados. Caiu de uma altura incalculável mas não morreu. Frustrou-se por isso. Não era boa nem para à morte.
Sentou-se, abraçou-se aos joelhos, orou. Para quem afinal? Em nada mais cria, nada mais lhe causava medo ou terror. Só queria conversar, precisava se abrir mas não havia ouvidos por perto.
Ouvidos malditos, sempre distantes de sua voz, nunca próximos de sua boca, jamais estiveram perto em suas angústias.
Gritou. Até que lhe faltasse ar nos pulmões. Em tão alto brado clamou que acreditou ter podido mudar a ordem natural das coisas. Não o fez. Tudo o que conseguiu foi babar. Encharcar o queixo, respingar os seios, limpar-se com as mãos frias num momento breve de lucidez.
“O que foi isso?”
Deitou-se e decidiu não ouvir mais nada. Tapou os ouvidos. Vozes a invadiam, não conseguia fugir. “Tralalou” bem alto. Vozes insistentes. Pediu paz. Não foi ouvida.
De onde vinham essas vozes? De que passado? De que remorso?
Viu uma luz que vinha da fresta da porta. Clamou ajuda. Ouviu risos.
Tornou a dançar sobre a cama, rindo de si e das vozes, de si e dos risos de fora, de si e da solidão que a aplacava.
Chorou por suas lembranças. Quisera tivesse algumas melhores. Sentiu-se pequena então se pôs a chupar o dedão da mão direita e com a esquerda acarinhava o próprio rosto imaginando receber o conforto de alguém. Acalmou-se por um momento.
Do outro lado da porta o diabo lhe fez psiu e fez deslizar pela ingrata fresta da porta um papelzinho dobrado onde guardava com muito cuidado uma lâmina dessas de cortar solidão.
Sem gritos, danças ou choro. Sem angustias, lágrimas ou remorsos entendeu o que não havia escrito.
Gota a gota foi buscar paz em outro lugar.




Adriana Kairos

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Marcas


Marcas



Tinha aquele sorriso assombrando seus dias. Dia após dia. O seu já não aparecia mais, só seus olhos diziam o que a boca não conseguia. Olhos de saudades, molhados de solidão. E aquele maldito fantasma em seu coração. Lembranças. Não mais dormia tinha medo de sonhar e vê-la de novo. Queria arrancá-la do peito, mas tinha medo da falta que essa dor lhe faria. Vagava...
Certa noite estava sentado no sofá da sala invadida de lágrimas, inundada de tristeza, quando decidiu viajar.
Bebou mares ardentes, coloridos e fugiu... Mesmo lá não conseguia estar longe de seu fantasma; ao contrário, lá sentia que ela poderia ser sua outra vez. E era. Mergulhava em seus braços, deslizava em sua pele, queimava-se com seus beijos. Aquele sorriso agora parecia vivo, real, seu outra vez.
Dançaram por horas, numa valsa quase eterna, silenciosa, suave, celestial. Apenas ao som cadente das batidas de seus corações, do fôlego que teimava em faltar e dos risos que ficavam fáceis quando estavam juntos.
Começou a chorar...
O torpor acabara...
Ela não está mais aqui, e não poderá estar mais.
Nunca mais...
As lembranças ainda o assombraram por alguns longos anos, até que decidiu mais uma vez viajar. Não suportou a distância. Cortou caminhos em si. Vermelhos como o seus olhos e profundos como o seu amor. Nesse caminho, encontrou mais uma vez aquele sorriso, pôde então sorrir também. Ela então o abraçou com suas asas, ele suspirou, fechou os olhos e foi ser feliz outra vez.





Adriana Kairos

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Ilusões e escolhas


Ilusões e escolhas



Há treze anos, Ana viu-se abandonada com seu rebento. Apesar de toda desgraça pré-anunciada, que a escolha de criá-lo sozinha trazia, ela o amou e prosseguiu. Mas alguém teve dó de seus tortos caminhos e foi então agraciada com um príncipe que a amava mais que a qualquer outra coisa, menos a seu passado.

Nos anos seguintes tudo ia bem... Pensava. A apaixonada Ana não conseguia (ou não queria) enxergar o duelo que travava seus dois amores, e um dia tudo explodiu. Com um olho roxo o príncipe decretou que seu passado já não poderia estar mais debaixo do mesmo teto que ele. O passado era forte demais e o acertou em cheio.

Ana vê-se de novo tão infeliz quanto no início. Não é justo perder um amor de verdade pensou, mas também não é justo abandonar, mais uma vez, alguém que só tem pagado por suas escolhas infelizes.

Na última terça-feira fez o que acreditava ser o melhor a fazer. Renunciou a seus amores e fugiu para o abandono de suas ilusões. Sua tristeza nunca mais foi vista.





Adriana Kairos

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Eu conto carneirinhos


Eu conto carneirinhos




Gosto de sonhar. Penso que os sonhos são passeios da alma. Sabe, quando queremos espairecer. Sair por aí. Distrair.

Só que os sonhos fazem viagens bem mais empolgantes. Viajam pelas lembranças, exploram o desconhecido, visitam até o que tememos e nos assustam com terríveis pesadelos. Mas são só pesadelos.

Revemos amigos, outros bem mais queridos e encontramos até gente nova. Sim!!! Acredito nisso. Sabe quando vemos alguém pela primeira vez e dizemos: "Eu não te conheço de algum lugar?" Sei lá, mas eu acho que é lá das voltinhas dos sonhos, que já o vimos antes.

Por isso é que gosto quando a noite chega. E espero ansiosa a hora de dormir, só pra saber a surpresa que terei. Que passeio farei, embalada em canções antigas de ninar. Quem sabe haja caminhos de jujubas e rios de refrigerantes, laguinhos de chocolate com patinhos de bombom. Sei lá... Às vezes a grande viajem é refugiar-se apenas no inimaginável.

Não sou mística ou qualquer outra coisa. Nem gosto de religião. Só quero compartilhar os meus humildes pensamentos. E convidar a sua alma a pôr o pé na estrada te lembrando o quanto é bom sonhar.



Adriana Kairos

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Meu sossego



Meu sossego



Há um lugar sossegado em mim, onde me escondo por alguns longos segundos. Não ouço a mim nem a ninguém; só o silêncio de minhas canções como mantras. Onde me escondo sem desaparecer do mundo. Meu abrigo, meu esconderijo, meu canto, por alguns eternos segundos. Mantendo-me incansável na lida, no vai e vem desenfreado do nosso tempo. Sem parar de correr descanso num refúgio insólito só meu.

Lá sempre tem o calor do sol e o cheiro do mar; ainda que frio aqui fora. Brisa morna e ondas a levar todas as preocupações embora.

Há um lugar sossegado em mim, quando fecho os meus olhos por alguns preciosos segundos. Quando tão somente me permito nada ouvir; nada me invadir. Respiro devagar e profundo. Em meu sossego me refaço do mundo. Meu interior, meu sagrado. Em meu íntimo casebre encantado.




Adriana Kairos

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

A resposta


A resposta


Um grito de horror.
Um estampido na noite.
Um corpo no chão.
Um choro amargo de arrependimento.
Lauro abraçou aquele corpo largado no chão. Fora a primeira vez em muitos anos que demonstrava algum tipo de afetividade, mas já era tarde.
Tudo silenciou depois do tiro. Tudo era audível agora. Tudo era compreensível também. Só então consegui ouvi-la. Só agora a compreendeu.
O corpo no chão era de sua mãe, uma mulher triste e covarde (burra até). Vítima de si mesma, pois perdoou o primeiro golpe, o segundo, o terceiro, o quarto...
Seu algoz, um menino de quinze anos, decidiu matá-la em doses homeopáticas de desgostos. Há alguns anos passou a carregar em seu corpo cansado, a sua alma repleta de uma desilusão quase alucinógena. Mas naquele dia encontrou uma resposta, uma solução, uma esperança, uma forma para descansar.
Domingo, quando Laurinho (assim ela o chamava) voltou para casa, transtornado como já era de costume, deu-lhe uma arma e disse-lhe:
“- Vamos! Faça agora o que tem que fazer. Tá tudo bem, afinal, será em legítima defesa. Defenda-se do meu amor demasiado. Defenda-se de mim! Porque estou te matando aos poucos cada vez que te perdou...”
Um grito de horror.
Um estampido na noite.
Um corpo no chão.
Um choro amargo de arrependimento.
“- Mãe! Perdão!”
“- Eu te amo filho!”





Adriana Kairos

"Às vezes, tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconscientes, eu antes não sabia que sabia."

Clarice Lispector