segunda-feira, 22 de março de 2010

O sonho de milhões


O sonho de milhões

Pela manhã, o sol morninho pediu licença a cortina da sala. Curioso, entrou pra espiar. A cortina bailarina de rendinha branca dançava ao som da brisa faceira que entrava pela frestinha da janela. Durante todo o dia só se ouvia os sons da casa: o relógio da cozinha e o seu tic tac, a boa e velha geladeira com o seu motor pestanejando num liga e desliga constante.

À noitinha o sol se despediu, cumprimentou a lua, que também quis entrar pra ver aquela casa tão bonitinha, com suas coisinhas todas no lugar e um gostoso aroma de pinho. Então de repente, como um general forte e imponente a porta se abriu, titilando o molho de chaves sentinelas. Chegou o dono da casa! Ele entrou e nem reparou que a lua o visitava. É que estava cansado. Arrastava o corpo como se um caminhão estivesse em suas costas, mas estava feliz, estava em casa. Respirou fundo e reconheceu o seu canto.

Ligou o som e espalhou música por toda parte. Escancarou as janelas pra noite entrar sem cerimônias e a cortina bailou ainda mais. Assoviava quando entrou no banheiro. Banhou-se em chuva quentinha com pedrinhas cheirosas de espuma. Enroladinho saiu de lá. Abriu uma gaveta amiga, de onde tirou uma malha com um cheirinho bom de sol, e a vestiu como a um abraço.

Foi a cozinha e fez um pouco mais de barulho; esquentou algo pra comer. Satisfeito resolveu fechar a casa outra vez, mas agora percebera a lua e a convidou pra ficar. Amanhã tinha que voltar ao batente antes de ver o sol entrar pela janela da sala.

Pulou na cama quentinha, tão fofa quanto uma nuvem. Aconchegou nas cobertas como quem se aconchega aos braços da mãe. Mas esqueceu a janela do quarto aberta e um vento traiçoeiro açoitou seus trapos fazendo-o acordar debaixo de uma marquise da Avenida Presidente Vargas.




Adriana Kairos

terça-feira, 16 de março de 2010

A complicada arte de ver


A complicada arte de ver


Rubem Alves
colunista da Folha de S.Paulo



Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões _é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."
Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.

William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.

Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.

Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".

Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinícius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa _garrafa, prato, facão_ era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".

A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas _e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.

Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".

Por isso _porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver_ eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

Rubem Alves, 71, educador, escritor. Livros novos para crianças e adultos-crianças: "Os Três Reis" (Loyola) e "Caindo na Real: Cinderela e Chapeuzinho Vermelho para o Tempo Atual" (Papirus).
Site: www.rubemalves.com.br

(fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ult1063u947.shtml)

quarta-feira, 10 de março de 2010

Cartografia N'alma



Cartografia n'alma


Sinto-me livre quando escrevo. Permito-me viajar.
É como se cada folha se tornasse um grande "mapa múndi". Onde cada letra, cada acento, cada ponto, fosse um ponto de uma cidade a se explorar.

Por alguns segundos fecho os olhos e sobrevôo cada cantinho. Sendo escuro ou claro, estando cheio ou vazio, vou lá conferir com prazer cada palavra, traço ou vírgula desse caminho. São diferentes as latitudes e longitudes; as linhas imaginárias são as minhas preferidas. Também há lugares de histórias tão absurdas, mas tão reais, que merecem ser escritas.

E assim, vou planando pelo vento das palavras. Tentando saciar essa íntima vontade de cartografar algumas histórias, que só existem em mim e que às vezes imploram atenção. Querem ser vistas, encontradas, descobertas..."-Contos à vista!!!"

Sigo, então, desbravando o meu inconsciente. Descobrindo em mim, terras antes jamais vistas. Respeitando cada palavra nativo-amigas que encontro por lá.
Abraçando com carinho as pequenas mutiladas.
Sei que cada uma se faz entender a seu modo, cada uma tem sua razão de ser.

Por isso, as transcrevo assim como vêm, "tá". Dá um charme especial ao mapa. Uma liberdade a mais ao vôo.
Cartografia é arte que do mar vem. Mas escrever é pra quem tem um infinito, como o mar, na alma.






Adriana Kairos

quarta-feira, 3 de março de 2010

Pensamento


Pensamento


Penso
Que o pensamento é o passar do tempo sem ação.
A ação arquitetada
Seguida de um sim
Ou de um não.

O pensamento são escolhas
Ações e vidas
Em bolhas de sabão
Viajando no pensar
De coisas boas ou más.

Tão inocente quanto uma faca cega.
Mais letal que a poesia
Quando encontra o leitor
O espanto do poeta.





Adriana Kairos

"Às vezes, tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconscientes, eu antes não sabia que sabia."

Clarice Lispector