
Memórias de uma mosquita
Criança má, mimada e sem coração. Apanhou-me num copo ainda sujo de geléia e sorria ao me ver sem ar. Como se não bastasse a asfixia arrancou uma de minhas asinhas. “Já não voas mais”. – me disse sem dor nos olhos. Sem arrependimento. Sem compaixão. Pus-me, então, a caminhar. Desprovida de parte do que mais amava. A imensidão de sonhar.
Ganhei o chão. Fortaleci minhas pernas e mente alimentando ilusão. Subi até o alto daquela dália. De lá, a brisa, minha velha companheira, convidou-me a um passeio. Respirei fundo. Abri o peito. Saltei. Zum!
Besouro, primo distante, sacou-me do ar “antes da queda” – disse ele. Deixando-me na segurança do tronco da laranjeira de um outro quintal. Como fiquei zangada. “Era a minha chance”. – lhe disse. Ele meneou a cabeça e seguiu o seu vôo.
Me desesperei por um instante, mas logo pus-me a escalar a velha árvore dos frutos doces. E assim fui subindo, devagar, até o alto do galho mais alto e da ponta da última folha me atirei. Zum!
Chorei quando abri os olhos e percebi que estava nas costas do pardal. “Vou te deixar no alto daquele monte. Lá estarás segura”. – me disse com um sorriso simpático de herói desavisado. Afinal, de que ou de quem querem me proteger? De mim?
Que lindo monte era aquele. Coberto de lindos, brancos e suaves dentes-de-leão. E mais uma vez a brisa, amiga velha, me ajudou. Arranquei duas daquelas fofas flores e as amarrei a cintura. Subi até o alto da pedra mais alta do tal monte e gritei a minha velha companheira: “-Vem brisa! Vem!” E usando como planadores os lindos, brancos e suaves dentes-de-leão voei.
Que sensação incrível é sentir o vento acarinhando o rosto. Só voando se vê o invisível e se é capaz de enxergar o bom oculto de quem nos feriu. Do alto os aromas se apuram e se distinguem. É mais fácil escolher o que nos faz bem. Mas sem uma de minhas asinhas fui caindo a cada despetalar das flores ao vento. Reconheci o meu destino. Acatei o meu final. De nada me arrependo. Estou feliz. Porque nada foi demasiadamente grande para me impedir de sonhar.
Adriana Kairos