
O diário
Virou mais uma página e assim seguiu, durante toda a sua vida, a virar outras mais. Como se esse movimento estúpido lhe trouxesse algum conforto. Como se esse ato, por desespero ou por encanto, lhe trouxesse um novo recomeçar. Abrir o livro. Lamber a ponta do dedo. Folhear, folhear, escrever, escrever, rasurar, e tornar a folhear. Labuta ou medo de voar? Estava tudo lá caprichosamente escrito à caneta tinteiro, minuciosamente anotado nas folhas cheirosas do seu diário.
Pouco sabia de si mesma, menos ainda do mundo ou de qualquer outra coisa. Só sabia do que ali estava. “Só sei que nada sei”. Sócrates, o mestre, ela declamava. O pouco que conhecia era do virar, pelo avesso, as páginas do seu inseparável diário. Páginas que antes deixara para trás, não muito distante, num momento, agora se tornavam norte, um guia. Seu Xamã de papel. Quando o medo, a tristeza ou a dúvida se lhes infundiam. Dessa forma redescobria vidas, vividas e sentidas, marcadas a cada página do seu “caderno de contar os dias”. Embora, por vezes, acreditar que poderia ter escrito melhor algumas delas, isso não a prendia a essa ou qualquer outra pouca ilusão, tão somente virava as páginas. Só alimentando a ilusão suprema de ser invulnerável enquanto folheia.
Certa vez, virou as páginas e seus olhos, traidores, borraram a tinta. Amassou o papel com a força da impotência do que “não há mais nada a fazer”. Por que chorar? Não as arrancou ou rasgou, apenas virou a página para escrever-se de novo. Para dar e receber nova chance. Carta branca. Folha branca de recomeçar. E de recomeço em recomeço conheceu e foi conhecida no balé das folhas e dos dias, em seu interior. Sua alma mesclou-se ao branco do porvir que nas cores intensas do que foi e na sensível aquarela do que agora é, misturou-se e bailou sob imagens e sons, cheiros e sensações que a caneta, velha companheira, teimava registrar.
E viveu virando páginas. Uma a uma se iam às páginas bailarinas. O movimento estúpido lhe era mesmo essencial. E quando, então, acabaram as folhas brancas do seu inseparável “caderno de contar os dias”, o fechou, carinhosamente, para, sorrindo, sob as asas dos anjos e sob o canto das Musas, tornar a escrever num outro lugar.
Adriana Kairos