sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Delirante


Delirante


Os esmaltes descascados evidenciados em mãos pálidas sobre o rosto, o vestido vermelho, rodado rodando sobre a cama num balé de êxtase, de loucura, de delírio, de torpor. Maquiagem borrada. Olhos negros de uma solidão profunda. Boca tremula, seca de saudade ri de desespero e desilusão. Última esperança na dança daquele palco insólito, sem platéia, sem amor.
Não bebeu nada. Só lágrimas salgadas de vazio, tormento, lamento do que nunca foi. Do que poderia ser. Do que deveria ser. Das coisas que não aconteceram, das que aconteceram sem ter sido como as que quisesse que fosse.
Tropeçou nos lençóis embolados. Caiu de uma altura incalculável mas não morreu. Frustrou-se por isso. Não era boa nem para à morte.
Sentou-se, abraçou-se aos joelhos, orou. Para quem afinal? Em nada mais cria, nada mais lhe causava medo ou terror. Só queria conversar, precisava se abrir mas não havia ouvidos por perto.
Ouvidos malditos, sempre distantes de sua voz, nunca próximos de sua boca, jamais estiveram perto em suas angústias.
Gritou. Até que lhe faltasse ar nos pulmões. Em tão alto brado clamou que acreditou ter podido mudar a ordem natural das coisas. Não o fez. Tudo o que conseguiu foi babar. Encharcar o queixo, respingar os seios, limpar-se com as mãos frias num momento breve de lucidez.
“O que foi isso?”
Deitou-se e decidiu não ouvir mais nada. Tapou os ouvidos. Vozes a invadiam, não conseguia fugir. “Tralalou” bem alto. Vozes insistentes. Pediu paz. Não foi ouvida.
De onde vinham essas vozes? De que passado? De que remorso?
Viu uma luz que vinha da fresta da porta. Clamou ajuda. Ouviu risos.
Tornou a dançar sobre a cama, rindo de si e das vozes, de si e dos risos de fora, de si e da solidão que a aplacava.
Chorou por suas lembranças. Quisera tivesse algumas melhores. Sentiu-se pequena então se pôs a chupar o dedão da mão direita e com a esquerda acarinhava o próprio rosto imaginando receber o conforto de alguém. Acalmou-se por um momento.
Do outro lado da porta o diabo lhe fez psiu e fez deslizar pela ingrata fresta da porta um papelzinho dobrado onde guardava com muito cuidado uma lâmina dessas de cortar solidão.
Sem gritos, danças ou choro. Sem angustias, lágrimas ou remorsos entendeu o que não havia escrito.
Gota a gota foi buscar paz em outro lugar.




Adriana Kairos

2 comentários:

Nilson Barcelli disse...

Querida amiga, o seu texto é impressionante.
O suicído só pode chegar no delírio da mente.
Parabéns pela excelência da narrativa usada para falar de uma situação nada fácil, mas que acontece com alguma frequência.
Gostei muito mesmo, vc escreve muito bem.
Beijo.

Cáh Morandi disse...

Obrigada pela visita em meu blog de poesias. Será sempre bem-vinda!
O seu está lindo...
Beijos

"Às vezes, tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconscientes, eu antes não sabia que sabia."

Clarice Lispector