quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Chuvas de verão


Chuvas de verão



Na mesa era parca a comida
Mas nunca se viu tanto amor num só lugar.
Estendidas no varal roupas coloridas
E no telhado roupas brancas pra quarar.

Vieram do lixão alguns livros
Que adornavam a velha estante
Entre paninhos de crochê e bibelôs de vidro
O sonho de lê-los era constante.

Também tinha uma Bíblia aberta
Diziam que era pra proteger.
Mas como um livro aberto ampara
A quem não o pode ler?

Muita renda a dona tecia
Mas toda a renda ainda era pouca.
O marido cansado volta da lida
E da panela o alento, o cheirinho da sopa.

Os moleques limpinhos e buchudos
Corriam de pés no chão atrás do vira-lata
Estavam felizes os meninos
O pai trouxera balas e goiabada em lata.

No horário nobre se reunia a família
Diante da tevê cheia de chuviscos e fantasmas
A notícia da chuva que viria
Trouxe lhes o medo. Os assombrava.

A noite foi de vigília
A cada gota, uma parte da encosta descia
Quando lhes pediam pra sair resistiam
“Não temos pra onde ir”.Diziam.

No fundo sabiam o que os esperavam
Acalmavam as crianças quanto ao que poderia acontecer.
Os barracos vizinhos já desceram.
A esperança será a última a morrer.

Abraçados e com medo
Esperavam por uma providência divina.
Pediram até perdão pelo pecado
De haverem nascido assim tão desventurados.

Então numa grande avalanche
Os livros a Bíblia e a estante
O vira-lata, a tevê e a família.
Sucumbiram naquela noite que chovia.

E ao vivo noticiaram na tevê
Que aumenta a cada hora
O número de vítimas
E que amanhã ainda vai chover.







Adriana Kairos

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"Às vezes, tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconscientes, eu antes não sabia que sabia."

Clarice Lispector