sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Vingança


Vingança




Acordou no chão. Entre cacos, entre rastos, entre sombras, entre ondas de desilusão. Maquiagem escura nos olhos, noite sombria sobrevivida, gosto de sangue na boca.

Levantou-se em dores novas e antigas, doídas num desagradável replay. Mais outra vez. Respirou fundo e decidiu: “Daqui pra frente será diferente.” Sacudiu a poeira e os cacos. Escondeu seus temores enxugando os olhos. Ergueu a cabeça, passou os dedos nos cabelos... “Ele não me tocará de novo!”

Foi a cozinha e ele estava lá. Sentado à mesa, “nada aconteceu...” destilava aquele olhar cínico.

Calada. Engolindo pelotas de sangue e de raiva, com dificuldade, chegou à bancada da pia. Não podia encará-lo. Doía-lhe mais se o fizesse. A faca já a esperava. Segurando-a com firmeza amolava-a na quina de mármore da pia. Com paciência, com ódio, com precisão, lançando sobre a lâmina toda a ira que os golpes sofridos a permitia lançar.

Viu seus olhos no metal, levemente apertados, como quem planeja algo ilícito e um sutil sorriso, molhado à represália, que refletia do seu, então, punhal.

Imaginou o que sentiria se fizesse e se ele sentiria se ela conseguisse. Pensou na sensação de alívio. Na lavada que sofreria sua alma. Na satisfação que lhe causaria cortá-lo, subjugá-lo, abatê-lo. “Maldito!”

A vingança perfeita que o medo a fez convergir ao frango congelado, que já suava frio, sobre a bancada.

O jantar foi servido pontualmente... Como sempre...




Adriana Kairos

2 comentários:

Robson Clério disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Robson Clério disse...

Muito bom!

Adriana, o texto Vingança me envolveu completamente, quis me vingar com ela,
torci por ela, mas ela não tinha opção...

Lindo!
Sucesso.
Robson Clério

"Às vezes, tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconscientes, eu antes não sabia que sabia."

Clarice Lispector